O anúncio recente do início de testes para produção da ButanVac, desenvolvida pelo Instituto Butantan, e a Versamune, feita em parceria do laboratório Farmacore com a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), duas potenciais vacinas nacionais contra a Covid-19, pode acelerar o ritmo de insumos farmacêuticos produzidos no Brasil. A avaliação é de Norberto Prestes, presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi). O Brasil produz hoje apenas 5% dos insumos necesários para a produção de medicamentos, o que faz da indústria nacional dependente de matéria-prima da China e da Índia. Para alcançar 20% em dez anos, são necessários investimentos públicos e privados entre US$ 500 milhões e US$ 1 bilhão para ampliar a capacidade tecnológica da indústria. Em 2019, o País gastou US$ 2 bilhões na importação de insumos. Para Prestes, os discursos do presidente Jair Bolsonaro contrários ao isolamento social e ao uso de máscaras não devem prejudicar parcerias do setor com o Ministério da Ciência e Tecnologia. “Se a condução da pandemia está tendo um viés político, a indústria farmacêutica continua com viés científico.”

DINHEIRO – Por que o Brasil produz apenas 5% dos insumos farmacêuticos que utiliza para fabricação de medicamentos?
NORBERTO PRESTES – É um fator histórico. Nós chegamos a produzir de 50% a 55% dos insumos consumidos nacionalmente, nas décadas de 1980 e 1990. Depois disso, no governo Fernando Collor, houve a abertura do mercado e a entrada de produtos importados, e nesse momento não houve um cuidado de proteger essa indústria que já existia aqui no Brasil. Quase toda ela migrou para China e Índia. Somente os insumos estratégicos das multinacionais é que migraram para as suas matrizes, para Estados Unidos, França, Suíça. O Brasil foi reduzindo e hoje, dentro dos 5% que a gente produz, não estão nem antibióticos, fundamentais para a saúde da população. A gente importa tudo. É o momento de a gente revisitar isso e analisar o que pode ser retomado. Podemos ser um player importante mundial para vender insumos, porque regulatoriamente somos reconhecidos e a China tem vários problemas em relação a questões regulatórias.

Teríamos capacidade de chegar a quanto de produção nacional?
Com dez anos de muito trabalho, fazendo grandes investimentos, a gente pode sair de 5% e ir para 20%. Mas, para isso, é necessário isonomia regulatória por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A mesma regra aplicada para a gente tem que valer também para o insumo que é importado, já que nesse caso não há visita in loco e apenas solicitação de documentos. Além disso, a gente está trabalhando com a Anvisa para que esse insumo seja desvinculado do medicamento. As empresas de insumos farmacêuticos terão registro da Anvisa, um documento aprovando, atestando a qualidade daquele insumo, e aí ela pode negociar mais rapidamente com a indústria farmacêutica para inserir esse insumo nos medicamentos, o que vai garantir mais competitividade.

Isso já seria suficiente para deixar o Brasil perto de uma condição menos dependente de China e Índia?
Hoje produzimos cerca de 200 insumos. Se chegarmos a 400 ou 500 já seria uma grande vitória. Em 2019, importamos US$ 2 bilhões em insumos. E a gente tem condições de produzir pelo menos US$ 500 milhões deles e com alto valor agregado. Um dos exemplos é uma molécula biológica, que está na fase 4 e tem capacidade de curar 80% do câncer de colo de útero.

Qual seria o investimento necessário para alcançar 20% de produção em uma década?
Para que a gente tenha resultados expressivos e chegar a 20%, esse investimento tem que ser da ordem de US$ 500 milhões a US$ 1 bilhão. Tanto de recursos públicos quanto privados. Na Índia, por exemplo, quem está colocando recursos, de US$ 8 bilhões, é o governo, criando linhas de crédito especial e melhorando a infraestrutura para as empresas. No Brasil, o laboratório Cristália investiu R$ 500 milhões em oncologia. O Ministério da Ciência e da Tecnologia tem discutido conosco meios para ampliar essas ações. E estamos conversando com o Legislativo para que seja criada uma lei de incentivo para a indústria farmacêutica e transformar isso em política de Estado e não de governo.

Mas quando a gente vê um governo que está no quarto ministro da Saúde e que pensa diferentemente do que boa parte das autoridades mundiais, não pode atrasar esses avanços?
Pode atrasar sim. Ao mesmo tempo em que fica mais complicado discutir projetos de longo prazo, foi a primeira vez que a gente teve uma conversa muito direta com o ministro de Ciência e Tecnologia (Marcos Pontes) e com o presidente da Anvisa (Antônio Barra Torres). E essa aproximação foi muito valiosa. Uma coisa é cuidar da saúde pública, outra é do setor de desenvolvimento farmacêutico em geral.

Acha, então, que o governo Bolsonaro estaria disposto a colocar parte dos recursos para desenvolver a indústria de insumos nos próximos anos?
Acredito que sim. A gente assinou recentemente um convênio com a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), com pelo menos R$ 500 milhões de recursos que vêm dos ministérios da Ciência e Tecnologia, Saúde e Educação, para desenvolvimento de produtos e ampliar a capacidade tecnológica para desenvolvimento de insumos nacionais. As empresas entram com 50% e a Embrapii com os outros 50%.

Mas dá para acreditar em um governo que não defende o isolamento social e durante muito tempo se negou a comprar vacinas contra a Covid-19?
Uma questão é política e outra é de saúde pública, que a gente fala que é de saúde e ciência. Todo medicamento vem da ciência e não de alguma suposição. Se a condução da pandemia está tendo um viés político, a indústria farmacêutica continua com viés científico. Tanto é que o nosso interlocutor no governo é o Ministério da Ciência e da Tecnologia.

Há dois governos, então?
Não é isso. Encontramos uma interlocução boa, que reconhece que a gente é importante. O que dali para a frente se propaga para a população, eu não tenho controle. O que precisamos é continuar
com nossa batalha.

O anúncio das vacinas contra a Covid-19 ButanVac e Versamune mostra um exemplo claro da possibilidade de aumento na produção de insumos
no Brasil?
Certamente as vacinas nacionais irão acelerar o processo de produção de insumos no Brasil, não só de biológicos, mas de todos os outros tipos. Mais uma vez provamos que temos ciência e tecnologia no País. Esperamos que sirva de inspiração para as empresas instaladas aqui, se torne um círculo virtuoso e que a competição seja por ser a mais inovadora. Se isso ocorrer, teremos excelentes surpresas nesse processo e caminharemos para importante autonomia tecnológica que tanto precisamos aliada a um relevante desenvolvimento do setor e da economia.

Os insumos nacionais podem ajudar a tratar as variantes da Covid que surgiram ou que possam surgir no Brasil?
Sim. A pandemia não vai sair da sociedade tão cedo e o Brasil desenvolveu novas cepas. A gente precisa ter tecnologia nacional para entender dentro da nossa genética, do nosso ambiente, da nossa alimentação, como é que esse vírus reage. Então é fundamental que tanto o setor privado quanto os laboratórios públicos tenham esse conhecimento para reagir. Isso é autonomia.