Margot Greenman foi do Credit Suisse e do Banco Mundial. Escolheu o Brasil há quase 12 anos. Em 2010 cofundou a Captalys, da qual é CEO. Se ela se arrepende da opção pelo País? Nada. E enxerga no cenário atual ainda mais oportunidades. À frente da sua gestora de crédito, com R$ 7 bilhões em recursos, ela aposta em produtos customizados para diferentes perfis de tomador, de todos os segmentos, e o resultado é baixa inadimplência.

DINHEIRO – Crédito virou a palavra maldita da temporada 2020.
MARGOT GREENMAN – Podemos dizer que sim, mas é importante separar. Temos o cenário mundial e o cenário Brasil. O problema do crédito por aqui é a alta concentração bancária. Estamos tentando casar a questão do crédito com a questão do acesso e são duas coisas que não convivem quando você tem poucas instituições e quer ter muito acesso. Você vai necessariamente ter gargalo, o que dificulta para o tomador chegar ao crédito. Então, acesso e concentração não coexistem. Essa é a resposta básica. Mas o problema vai além. Estamos falando de uma estrutura do mercado financeiro, especificamente no que se refere a acesso a crédito, que é antiquada. E o próprio governo já reconheceu isso.

Como?
No mês passado o BNDES lançou edital convocando originadores alternativos de crédito [instituições não bancárias] para um programa de R$ 4 bilhões a pequenas e médias empresas. Quem participou? Petrobras, shopping center, todas as empresas de maquininhas… São duas modalidades. Uma que eles chamaram de originador, que são as grandes empresas, e outra que são os gestores de fundos PME (pequenas e médias empresas), que nada mais é que o envolvimento do mercado de capitais no mercado de crédito. Poucos notaram o quanto é revolucionário o BNDES reconhecer que o acesso a crédito apenas pelo banco é uma coisa de ontem. Porque essas empresas estão fazendo negócios com alguém e isso te deixa dez passos à frente.

O problema do crédito não seria apenas de regulação do mercado, e sim de uma disposição de estruturas de governo para fazer com que isso ocorra?
Diria que são as duas coisas. Muitas vezes quando há um programa [de oferta de crédito] ele é destinado aos canais antigos. Por isso programa do BNDES para mim foi “Uau!”. É uma maneira de reconhecer que você não vai resolver o problema só por meio das instituições tradicionais, tanto que banco não pôde participar.

Sobre o custo do crédito no Brasil. Ele também está muito vinculado à inadimplência, não?
Trabalho com crédito há 30 anos, no Brasil e fora, e acredito numa coisa: quem toma crédito deseja pagar. De forma geral é isso. Quando a gente olha os números do BC sobre inadimplência no crédito, e são números das instituições bancárias, não podemos dizer que seja tanto [a inadimplência]. O brasileiro não é mais mau pagador que outros. Levemente pior, mas nada que justificaria o tamanho do spread. O que temos é uma série de ineficiências. O mais importante é lembrar que o Brasil vem de um sistema que não faz mais sentido. O País vivia uma sequência de crises inflacionárias que levavam a instabilidade [do sistema]. Então você tinha, e dá para entender isso, o Banco Central completamente focado em dar estabilidade ao sistema, acima de se preocupar em promover concorrência. Ter estabilidade do sistema financeiro foi o objetivo principal. A prioridade foi essa. O sistema foi criado em cima disso e, claro, estabilidade é mais caro. Não importava tanto o custo do crédito e sim ter um sistema estável. Agora isso está mudando. É lento, mas não se modifica isso do dia para a noite. Mas o BC está fazendo um trabalho técnico orientado para realmente criar concorrência, reduzir questões regulatórias para novos entrantes. São movimentos que trarão impactos. Eu faria a analogia do telefone fixo e móvel na África. No continente eles nem viveram a primeira fase, da telefonia fixa, já foram diretamente para a segunda. Aqui com crédito vejo algo parecido. Já pularemos de fase.

Num artigo seu no LinkedIn você diz que “impacto de verdade só pode acontecer quando se consideram as realidades culturais, sociais e econômicas de cada grupo”. Na realidade brasileira do crédito o que é decisivo para a transformação?
Acesso ao crédito não é somente ter um banco perto de você. Acesso é como você lida com o crédito, como lida com o constrangimento [do tomador]. É o que chamo de contexto cultural do crédito. E quando você olha para isso você vê que são os mesmos produtos há muito tempo. Não existe inovação, não tem nada diferente. Você vai pegar o cheque especial, pegar um empréstimo, são sempre duas variáveis: prazo e taxa. Então não tem um produto adequado a seu perfil. Quando você vai comprar uma calça tem 30 mil modelos. O único produto em que você não tem variedade, nenhuma customização, é o crédito. É tudo igual. Quando a gente entrou no mercado nossa lógica foi o inverso.

De que maneira?
A gente pensou: “Temos de começar com uma infinidade de produtos”. Imaginando que o produto tem de ser desenhado em cima da situação, do perfil do tomador que precisa do crédito, desse contexto social e cultural de cada realidade. Partindo daquela premissa de que o tomador quer pagar. O problema vem quando ele não consegue. Mas se você cria um produto personalizado que é melhor casado com seu fluxo de caixa, você vai ter um desempenho melhor. Ele vai pagar. Então pensamos uma alternativa que permitia soluções totalmente customizadas, para determinados segmentos em determinados momentos. Um exemplo: se você está no agronegócio vai ter um ciclo muito diferente, fluxo de caixa na safra e na entressafra muda completamente. E isso não é algo específico da cultura do Brasil em relação a crédito, mas foi aqui que conseguimos implementar esse novo modelo, que considera a realidade econômico-financeira dos tomadores e ter produtos para isso.

Para tanto foi preciso desenvolver soluções tecnológicas muito específicas.
Primeiro tive de defender a ideia e deixá-la muito clara. Depois desenvolver um sistema que fosse único, com todas as soluções dentro dele. É uma forma modular. Criamos o sistema do zero já pensando num número infinito de produtos. Essa abordagem é muito positiva. Nossa inadimplência fica entre 2% e 4% ao ano. Ela fica menor porque estamos trabalhando na capacidade de pagamento do pagador. E expandimos. Temos cada vez mais diferentes setores econômicos e suas especificidades, diferentes tipos de produtos para diferentes finalidades. Isso tudo ajuda a mitigar riscos.

Hoje são quantos colaboradores na Captalys? E imagino que por juntar mercado financeiro com muito do tecnológico, dois setores historicamente refratários a mulheres, a participação por gênero não seja equilibrada.
São 163. Destes, 36% são mulheres. O setor financeiro tem essa característica e se você me perguntasse isso até dois, três anos atrás eu diria que não faz diferença nenhuma, mas não tenho mais a mesma resposta. Já participei de reuniões em que estava ao lado meu advogado-chefe, que é um senhor, estou liderando a conversa e o executivo da outra empresa começou a direcionar as respostas para meu colega, me ignorando. Eu tenho muito apoio na Captalys, muita sorte por isso, mas não deveria ser assim [a baixa presença feminina no mundo corporativo financeiro]. Isso é muito complicado.

A Captalys tem como lema que o crédito é um bem comum, uma maneira de democratizar o crédito.
É preciso dizer que democratizar o crédito não é democratizar o acesso. É um pedaço, extremamente importante, mas não é apenas isso. Quando a gente fala de democratizar o crédito tem o outro lado: “Como ganhar dinheiro com o crédito?”. Porque a estrutura é de intermediação financeira. De um lado o capital, no meio a instituição [banco, fintech] e na outra ponta o tomador, que é quem paga o custo do preço do crédito. Há um problema nesse modelo. Por isso a democratização do crédito vai além. Crédito é o único bem que nasce como um bem compartilhado. Não é como um carro, que pode até ser emprestado, ou virar Uber, mas é uma opção. Ou um apartamento, colocar no Airbnb ou não. Crédito por definição é o dinheiro de outro que você está pegando.

O modelo convencional do crédito quebra essa ideia?
O modelo de intermediação financeira interrompe isso, tira a conscientização de que o tomador está acessando dinheiro de outra pessoa, alguém como ele. Parece que ele pega do banco. Não é do banco, é do seu vizinho. A gente [Captalys] não é um intermediário financeiro, não ganha dinheiro com spread. A gente ganha um fee por cuidar de fundos, que são os investidores. De um lado temos eles, do outro os tomadores e no meio empresas que fornecem acesso, PayPal, B2W… Esses são os três stakeholders. Restabelecemos as conexões que ajudam a entender que o dinheiro usado pelo tomador é do seu tio, do vizinho. Para o investidor tem uma boa rentabilidade [CDI + 6% a 8% ao ano ou CDI + 2% a 4% ao ano, dependendo do perfil]. E também o fato de ele fazer a economia girar. Na Captalys houve essa quebra de paradigma. Mais que maximizar o retorno, nosso comprometimento junto ao investidor é com a consistência. E com todos os nossos stakeholders levar coerência na relação. Produtos financeiros não nascem desconectados de características daquele grupo, da cultura. Democratizar o crédito é isso.

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