Há 30 anos, a Estônia tornava-se um país independente da União Soviética. Em três décadas, deixou de ser um território pobre para ser referência em tecnologia e desburocratização. Hoje é o país mais digital do mundo, com 99% dos serviços públicos oferecidos de maneira on-line. É uma cultura que vai da mentalidade dos governantes à sociedade. Com um tecido social totalmente conectado digitalmente, tendo educação e internet como pilares, os resultados aparecem. São economizados aproximadamente 1,4 mil anos de horas de trabalho anualmente. Forma-se, assim, um ambiente acolhedor para empresas. No norte da Europa e com apenas 1,3 milhão de habitantes, a Estônia tem PIB per capita de US$ 23,7 mil (2019, Banco Mundial), quase três vezes o do Brasil, e acaba de inaugurar em São Paulo o e-Residency, escritório para facilitar aos brasileiros se tornarem cidadãos estonianos e, assim, abrirem e gerenciarem empresas no país europeu de forma virtual. “A votação pela internet, que estreou em 2005, permite aos eleitores votarem em qualquer computador com internet, em qualquer lugar do mundo, afirmou Lauri Haav, diretor-executivo do e-Residency, vinculado aos Ministérios da Economia e do Comércio Exterior da Estônia.

DINHEIRO – Por que o Brasil foi escolhido para receber o programa e-Residency?
Lauri Haav – Primeiro foi a alta demanda entre os empresários brasileiros. Já existem centenas que são e-residents na Estônia hoje, mas todos têm a carteira de identidade graças à sua própria facilidade de recursos e persistência, pois precisavam viajar para Nova York (EUAUA), Lisboa (Portugal) ou Madrid (Espanha) para buscá-la. Em segundo lugar, desde que a pandemia global estourou, ficou claro que não podemos esperar que os empresários brasileiros viajem. Não é sensato.

Quantos são os cidadãos digitais brasileiros e quantas empresas brasileiras estão abertas na Estônia?
Existem mais de 700 e-residents da Estônia no Brasil que estabeleceram mais de 125 novas empresas da UE na Estônia e que administram seus negócios 100% virtualmente. Esperamos que os números se multipliquem. Vemos que o brasileiro é muito empreendedor e a qualidade da formação, principalmente em tecnologia, é muito boa.

Como a Estônia deixou para trás a condição de país pobre para se transformar no mais digital o mundo?
Quando a União Soviética caiu, estava praticamente falida. No entanto, a Estônia era uma das regiões em melhor situação e já havia estabelecido a capital Tallinn como centro de pesquisa e desenvolvimento de infotecnologia. Na Estônia, o Instituto de Cibernética foi estabelecido em 1960, antes de qualquer outro lugar na União Soviética. Em retrospecto, isso nos deu uma boa posição inicial para o desenvolvimento da sociedade digital. Mas logo após a independência a Estônia não tinha dinheiro suficiente para sustentar o exército de burocratas. O novo governo teve que ser criativo e pragmático e a necessidade é a mãe da invenção. O arcabouço legal também foi criado. Assim como foi lançado o projeto educacional Tigerleap, que garante que todas as escolas na Estônia forneçam acesso a computadores e treinamento relevante. Com isso, a internet foi logo considerada um direito humano.

Quais os incentivos – fiscais e de apoio estrutural – que a Estônia oferece para que sejam criadas empresas nativas digitais e startups?
O mais atraente talvez seja que haja 0% de imposto sobre os lucros reinvestidos (corporate tax on reinvested profits). Com o incentivo, o governo da Estônia mostrou que o objetivo é capacitar o empreendedorismo local e atrair os investidores estrangeiros. O sistema tributário da Estônia é muito transparente, direto e relativamente simples. Além disso, apoia e capacita empresas digitalmente nativas. Esses fatores ajudam a fazer com que a Estônia tenha o maior número de startups per capita na Europa.

Quais são os principais serviços digitais disponíveis e quais os mais acessados?
A lguns serviços básicos adotados no início fizeram grande diferença na mudança de mentalidade e tiveram papel importante para ganhar a confiança da população. A votação pela internet (i-voting), que estreou em 2005, é um deles. Permite aos eleitores votarem em qualquer computador conectado à internet, em qualquer lugar do mundo. Nada menos que 36% – chegando a 64% – dos eleitores participam do sistema. O segundo serviço mais conveniente e amplamente utilizado é a declaração fiscal eletrônica. O E-Tax board foi criado em 2000 e permite que todos declarem seus impostos on-line. Demora em média três minutos e é utilizado por 98% das pessoas.

Há críticas por parte de alguns setores da sociedade ao formato de votação on-line?
Os dados eleitorais mostram que funciona muito bem. Sempre existe a possibilidade de alguns grupos questionarem se as medidas de segurança necessárias são aplicadas em um processo tão importante. Até hoje, tais dúvidas não foram substanciais.

Ainda existem serviços analógicos em que os cidadãos têm de comparecer nas repartições públicas?
Os únicos são casar-se e divorciar-se. Por razões óbvias. No entanto, um deles pode se tornar digital em breve, pois há desenvolvedores que procuram tornar o divórcio disponível virtualmente. O casamento provavelmente sempre será um serviço analógico porque é necessário avaliar se o casal se conhece e concorda em se casar.

Quais os resultados gerais alcançados com um governo quase 100% digital?
A Estônia atingiu um nível sem precedentes de transparência na governança. Como resultado, economiza 1,4 mil anos de horas de trabalho anualmente e se tornou um ambiente acolhedor para empresas, empresários e cidadãos. O conceito de o governo criar serviços com a experiência dos cidadãos em mente torna a sociedade mais interconectada e forte em geral. O quadro jurídico relativo à segurança dos dados pessoais foi adotado como prioridade.

Quais os avanços tecnológicos implantados na área de mobilidade?
Uma das plataformas recentes e mais interessantes é a Smart Road, que combina a informação em tempo real do trânsito, ou seja, conecta todas as câmeras de trânsito, obras viárias… Tudo é integrado a nível estadual e gratuito para uso com as informações de GPS de diferentes aplicativos.

A Estônia é um país de 1,3 milhão de habitantes, do tamanho da cidade de Guarulhos (SP). É possível implantar um governo digital em um país do tamanho do Brasil, com 210 milhões de pessoas?
Claro. Quanto maior for o tamanho, maiores serão os benefícios. Pensamos na Estônia como um teste para governança digital e soluções na UE. Devido ao nosso pequeno tamanho, a adoção foi mais rápida e os erros de cálculo foram facilmente detectados e corrigidos Porém, para o Brasil, a digitalização passo a passo pode levar mais tempo, mas o impacto será muito maior. Considere o tempo conquistado, a conveniência, os benefícios econômicos e a transparência dos serviços digitais. É um caminho que vale a pena seguir.