Doutor em Ciência Política pela USP, Gunther Rudzit se tornou um dos maiores acadêmicos do País na área de Segurança Internacional. Professor de Relações Internacionais da ESPM, ele também leciona na Universidade da Força Aérea (Unifa) desde 2016, onde convive de perto com os militares. Em entrevista à DINHEIRO, Rudzit analisa a crise gerada pela saída das tropas americanas no Afeganistão, o que abriu caminho para a retomada do poder pelo taleban, e avalia o atual ambiente político do Brasil, sob a polêmica militarização da máquina pública promovida pelo governo Bolsonaro.

A crise no Afeganistão pode ser um novo fator de estabilização da política mundial?
Não podemos esquecer que o ex-presidente Donald Trump foi eleito com a promessa de acabar com a guerra eterna do Afeganistão. Ele negociou durante anos com o taleban em Doha e tinha programado a retirada para maio. Então, o que o Joe Biden fez, como um bom político, foi tomar essa decisão e deixar um marco na presidência dele. Essa retirada já era mais do que prevista.

Mas o caos social também era previsto?
O colapso tão rápido não era tão previsto assim. Apesar do horror em temos de direitos humanos, em termos de controle interno e externo (mesmo com o monopólio ilegítimo do uso da força) o Afeganistão vai conseguir se estabilizar. Não estou discutindo se o modo como agem é bom ou não. Tudo isso é muito agressivo. Mas, internamente, o controle do país será maior. Isso o taleban consegue fazer.

A decisão dos Estados Unidos de abandonar o Afeganistão simboliza qual mudança na política externa americana?
Simboliza que os Estados Unidos vão abandonar as guerras de “nation bulding”, de construção de Estados. Foi um fracasso na Somália, no início dos anos 90. Foi um fracasso no Iraque. E, agora, se mostra um fracasso no Afeganistão. Países com culturas tão diferentes da cultura americana mostram que não funciona. Um dos erros americanos no Afeganistão aconteceu no governo de George W. Bush que tentou partir para esse processo de construção de nações mundo afora. Não dá para achar que se pode construir um governo central forte despejando dinheiro e mantendo tropas.

Então os americanos serão mais passivos diante da deterioração das democracias?
Os Estados Unidos saíram do Afeganistão, mas vão continuar fiscalizando e intervindo em países aliados, capitalistas e democracias, como o Brasil. Os americanos já deixaram bem claro. Desde Barack Obama, isso tem ficado claro no Sudeste asiático, enquanto a Hillary Clinton era do Departamento de Estado. O Trump deu outro nome porque ele não podia fazer nada que era parecido com o do Obama, mas ele continuou tentando sair do Oriente Médio e ir para a Ásia, que é o que interessa para eles em termos econômicos, políticos e estratégicos. Os americanos vão continuar fazendo suas guerras.

E como isso esbarra no Brasil?
O Brasil não está na lista de prioridades do governo Biden. Eles têm coisas mais importantes para resolver. Mesmo na América Latina, há questões mais importantes para os americanos do que o Brasil. A prioridade dos Estados Unidos é a China e, em menor escala, a Rússia. O Brasil é um dos poucos países em que os Estados Unidos têm superávit comercial. O recado americano para o Brasil é outro. Se o País não quiser participar da Cúpula do Clima, arque com as consequências. No segundo semestre, haverá a Cúpula da Democracia. Se não quiser participar, arque com as consequências. Essas são políticas em que os Estados Unidos querem ter os aliados no enfrentamento da China.

As ameaças do presidente Jair Bolsonaro à democracia não é um fator de alerta para os Estados Unidos?
Com certeza esse é um fator preocupante para eles. Não é à toa que o National Security Advisor já veio aqui e passou os recados. Vieram consultar o País para dizer que consequências virão se houver ruptura. Quem viveu em Washington no dia 6 de janeiro sabe muito bem o que é isso. Então, o governo americano não reconhece o risco de golpe clássico. A tentativa de atentar contras as instituições e contra a estrutura democrática já é vista como golpe. Mas a retaliação viria pela economia.

Quais seriam?
Inúmeras. Congelamento de investimentos brasileiros nos Estados Unidos, corte de crédito no Fundo Monetário Internacional e restrições do País no Banco Mundial. Contra o Brasil, os americanos não agiriam sozinhos. Teriam o apoio dos europeus. Esse confronto econômico seria desastroso. A economia já está quebrada. As contas públicas, completamente desajustadas. O governo já está dando pedaladas com a PEC dos precatórios. O Orçamento não fecha nem com essa PEC. Então, se o Brasil insistir em um enfrentamento com o governo americano, vai ser uma tragédia. Desajuste total da economia.

O presidente Bolsonaro sabe disso? Ele mesmo, ao responder a uma crítica do Biden, disse que quando acaba a saliva tem que usar a pólvora…
O desfile de fumacê no Palácio do Planalto mostrou que o governo não tem saliva nem pólvora. Aquele desfile militar improvisado deixou o Brasil com uma imagem muito ruim. Para o próprio presidente. Não se trata mais das posturas excêntricas do Bolsonaro na política externa. Pior do que virar motivo de piada contra o presidente, os militares é que devem estar sofendo com cada meme que aparece nas redes sociais a cada dia. Além disso, aquele vexame gerou no STF e no Congresso uma coalizão de forças, unindo pessoas ideologicamente diferentes, o que não aconteceria se não houvesse esse tipo de manifestação.

Então foi um efeito contrário?
Politicamente, em vez de intimidar e demonstrar força, o tiro saiu pela culatra. Mas podemos esperar que Bolsonaro manterá tensionada a relação com os outros poderes até o último dia do seu mandato. Para a minha surpresa, nossas instituições têm reagido muito fortemente a essas investidas ao seu enfraquecimento.

Como o conflito entre EUA e China, pode refletir no Brasil?
Por enquanto, o ministro Carlos França, à frente do Itamaraty, está fazendo o que precisa ser feito. Está low profile. Não precisa tomar partido. O chancelar já abriu canais de diálogo com o governo chinês. Resolveu aquelas tensões que estavam existindo com o Ernesto Araújo. Temos que manter a nossa tradição de neutralidade no Itamaraty. Temos interesses dos dois lados. Infelizmente, o Brasil está isolado do mundo. Nem mesmo com os vizinhos da América Sul, com quem sempre tivemos excelente relação, agora temos. Com Europa e Estados Unidos a mesma coisa. Vamos demorar muito tempo para conseguir virar essa página.