O russo de 38 anos Gleb Prostakov está numa posição que poderíamos classificar como equilibrada para comentar o atual conflito, pois passou a maior parte de sua vida na vizinha Ucrânia. “Geralmente não falamos em nacionalidade aqui na Rússia, especialmente na presente situação”, disse à DINHEIRO o ex-editor-chefe da edição ucraniana do canal de notícias Vesti. Prostakov não é só um transeunte entre os dois países atualmente em guerra: foi assessor do ex-candidato à presidência da Ucrânia em 2010 e 2014 e vice-Primeiro Ministro na época, Serhiy Tihipko, uma figura importante na política do país. Em seus artigos de um ano atrás, Prostakov acreditava que a sanidade e a tolerância serviriam como futuro para a Ucrânia — um quadro que, infelizmente, se foi. Agora, ele entende como a Rússia e a Ucrânia chegaram a essa situação quase inevitável e culpa em parte o Ocidente por uma campanha contra a Rússia. Mas mesmo assim, acredita que a economia do país consegue driblar as sanções do Ocidente. Pelo menos a curto prazo…

Como o mercado russo reagiu no momento em que ficou claro que os dois países escalaram para uma guerra?
O mercado russo está no meio de aceitar uma nova realidade. A queda do rublo, suspensa em 24 e 25 de fevereiro por conta de uma intervenção do Banco Central, foi retomada no dia 28, mas acabou alimentada por declarações de sanções pelos EUA, União Europeia e vários outros países contra as reservas do Banco Central. Mas note que apenas uma parte das reservas reguladoras está colocada em instrumentos no Ocidente. É mais provável que entre metade e três quartos estejam em moeda e ouro dentro da Federação Russa, o que provavelmente vai sustentar o sistema financeiro no curto prazo.

No curto prazo, mas…
As principais sanções afetam o setor financeiro — vários grandes bancos de propriedade do Estado. As sanções são heterogêneas, podem ser drásticas, como fazer parte da lista SDN (empresas, indivíduos ou países sujeitos a sanções criadas pela Agência de Controle de Ativos Estrangeiros dos EUA, a OFAC) a algo menos severo. É mais provável que grandes bancos se desconectem do Swift (sete bancos já foram, até a quarta-feira, 2 de março, restando o Sberbank e o Gazprombank, canais de pagamentos de petróleo e gás russos para os europeus). A Rússia, no entanto, tem seu próprio sistema de processamento de pagamentos, provavelmente ligado a parceiros asiáticos que usam o mesmo sistema. As restrições do Swift não vão afetar as exportações de energia, que são essenciais para a economia. Na segunda-feira (28), um pacote de medidas anticrise foi aprovado, incluindo a venda de 80% dos recursos dos exportadores, e o banimento da retirada de capital por meio de empréstimos bancários para não residentes da Rússia. A taxa básica do BC foi consideravelmente aumentada na segunda — de 9,5% para 20%.

No Brasil se fala em problemas de exportação para a Rússia, como a carne, e importação de fertilizantes.
Não há restrições atualmente à importação de alimentos pela Rússia. Restrições podem ser de natureza técnica relacionadas às restrições da operação do Swift aqui no país. Como você sabe, o Brasil não apoia sanções contra a Rússia (apesar de na ONU, o Brasil ter votado contra a invasão), o que significa que não há motivos para se impor qualquer restrição a importações brasileiras.

O comércio e os negócios russos têm um plano após o corte pelo Ocidente do acesso ao Swift?
Incapacitar o Swift vai ter um efeito no curto prazo. Mas nesse caso a Rússia vai mudar para seu próprio sistema SPFS, ou Sistema de Mensagens Financeiras, assim como usar a China e outros análogos.

As empresas ocidentais que têm negócios na Rússia estão aflitas. O lema “são só negócios” vai ficar de lado, não?
Vários fornecedores, em particular a Boeing, já estão se recusando a abastecer a Rússia com seus produtos. Arrendadores exigiram a devolução de suas aeronaves em nosso solo. Alguns estão abandonando projetos conjuntos, como a petrolífera Rosneft, da qual o governo russo é seu maior acionista, e outras companhias de propriedade do Estado. Ao mesmo tempo, companhias ocidentais com produção e marketing na Rússia estão interessadas em manter seus negócios. O governo não deseja impedir isso, principalmente no segmento de consumidores, e quer, na verdade, apoiá-los. O problema é a necessidade de subsidiárias russas dessas companhias terem de obedecer sanções de seus próprios governos. Nesse caso, pode haver contrassanções da Rússia, que pode até nacionalizá-las ­­— isso se o Ocidente começar a tomar propriedades russas em suas jurisdições.

A Bolsa de Valores de Moscou caiu: estava a 3,5 mil pontos em 17 de fevereiro e foi a 2,4 mil em 25 de fevereiro. Mau sinal?
Agora é difícil dizer quão colapsada a bolsa de valores russa está. Em 24 e 25 de fevereiro, o mercado mergulhou de 30% a 40%, se recuperando com as notícias do reconhecimento das DPR e LPR (regiões separatistas na Ucrânia não reconhecidas pela União Europeia, mas pela Rússia). Mas não está claro que perdas a bolsa sofreu com o início das ações na Ucrânia porque operações de comércio nos mercados de ações russo foram suspensas por decisão regulatória.

É muito difícil para o Ocidente que não é especialista em Eurásia saber como a população russa está reagindo a esse conflito, apesar de protestos.
Agora não há estimativas confiáveis da sociedade russa aos eventos. De acordo com uma pesquisa pelo All-Russian Public Opinion Research Center (uma empresa do Estado), 68% apoiam as ações na Ucrânia. Continua pouco claro quão representativa é essa medição. A reação da sociedade russa pode ser medida por uma segunda natureza — não tanto em relação aos eventos na Ucrânia, mas no quanto isso afeta as vidas dos cidadãos, como a desvalorização do rublo, o aumento do preço dos produtos…

Aqui no Brasil temos um vizinho que gostamos de pegar no pé, a Argentina. Mas é quase uma coisa folclórica, algo como Pelé versus Maradona. Como é a relação entre o russo e o ucraniano?
Rússia e a Ucrânia tinham relações similares até 2014, com a violenta derrubada do poder sem nenhum procedimento legítimo (queda do presidente eleito Viktor Yanukovych, que se aproximava da Rússia). Depois disso, a Ucrânia se transformou em uma plataforma de confronto entre o Ocidente e a Rússia. Propagandas em grande escala de ambos os lados contribuíram para a deterioração das relações não só entre os países, mas também entre as pessoas. A guerra em Donbass (região na Ucrânia em que se arrasta desde 2014 uma disputa entre separatistas e governo ucraniano), que a meu ver é essencialmente um conflito civil com envolvimento de forças externas como EUA, Reino Unido, União Europeia e Rússia, agravaram ainda mais a situação. Um grande fator de irritação para a Rússia foi uma política russofóbica do governo ucraniano, assim como tolerância para o aumento de movimentos neonazistas no país. No geral, há uma grande tragédia humana, destruindo famílias e vítimas inocentes pelo confronto de duas populações fraternas, que viraram refém da destrutiva política Ocidental.

Nas ruas, tudo parece como um dia normal ou existe algum desconforto com o país estando em meio a um conflito?
Tudo está calmo nas ruas atualmente. A maior batalha está na internet. Existem espontâneos e organizados protestos contra a guerra em cidades russas, que são reprimidos por autoridades com o objetivo de não dar nenhuma chance para que a situação saia de controle. Entretanto, a maioria dos cidadãos está experimentando uma clara e forte tensão no que diz respeito aos eventos em andamento. Tivemos a Covid-19 e logo em seguida isso. A sociedade nem sequer teve um tempo de descanso.

Você, que nasceu na Rússia e viveu a maior parte de sua vida na Ucrânia, como se sente diante do que acontece?
Com um sentimento de grande tragédia diante de meus olhos. Com um desejo de que tudo termine o quanto antes. Mas mesmo sentindo isso, ao mesmo tempo eu claramente entendo a lógica que fez desse conflito algo inevitável.