Não espere de Gerald Häfner um olhar comum sobre os problemas do cotidiano. Foi assim ao ser um dos fundadores do combativo Partido Verde Alemão. Foi assim ao ocupar cadeiras nos parlamentos alemão e europeu. E foi assim ao se tornar dirigente da Seção de Ciências Sociais do Goetheanum, sede mundial do movimento antroposófico. Em entrevista à DINHEIRO, Häfner falou sobre a forma como a pandemia mudou a mentalidade da sociedade, reforçou a necessidade de respeito ao meio ambiente e avaliou mudanças na estrutura econômica mundial, com o fechamento de inúmeras pequenas e médias empresas. Formado em filosofia, ciências sociais, germanística e pedagogia Waldorf, o pensador enfatizou a importância da construção de novas estruturas sociais que possam responder aos desafios contemporâneos. Também citou o papel de governantes como Jair Bolsonaro e Donald Trump na preservação de vidas durante uma das maiores crises sanitárias do mundo.

Na sua avaliação, as mudanças trazidas pela pandemia são temporárias ou efetivas?
É difícil porque cada país foi afetado de uma maneira, seja na sociedade, economia e política. Em geral, acredito que aprendemos muito pouco sobre qual é a razão por trás dessa e de outras pandemias. Nós sabemos, através de estudos científicos, que muitos vírus são originários de animais. Os estudos dizem que os vírus tendem a ‘pular’ para a raça humana quando esses animais estão em perigo ou sentem medo. Eu diria que o jeito que tratamos esses animais – os mantendo em jaulas e lugares pequenos completamente distintos do habitat natural –, torna mais provável a causa dessa pandemia e de novas pandemias. Uma coisa é usar máscaras e cuidar um do outro. Outra é respeitar mais a vida na Terra.

Quais foram os aprendizados durante esse período?
A coisa mais importante é a reflexão sobre o que é realmente importante. A pandemia trouxe essa mudança de mentalidade. Colocou o holofote em quem realmente mantém o sistema vivo, que são os médicos, os lixeiros, as pessoas que trabalham todos os dias permitindo viver nossas vidas normalmente. Outro aprendizado foi sobre a importância da verdade, principalmente quando diversos governantes do mundo afirmam que o vírus não é real. Também ficou clara a dependência mundial de navios e aviões para o abastecimento de itens básicos. Faria mais sentido produzir pontos de abastecimento em locais mais próximos de onde as pessoas realmente vivem e precisam.

E na política, quais foram os aprendizados?
Ficou claro que é importante a participação da sociedade na discussão política. Que a sociedade esteja disposta a entender diferentes pontos de vista. Quanto mais polarização, quanto mais incapaz você é de falar entre esses diferentes movimentos, mais as coisas se destroem e a sociedade é afetada.

Na sua opinião, quais foram os erros cometidos por Bolsonaro e Trump no combate ao coronavírus?
Essa pandemia é um desafio para toda a sociedade. Quanto mais nós encontrarmos maneiras de interagir e discutir soluções de forma democrática, mais as pessoas vão respeitar essas decisões e melhor o país passará pela crise. Negar ou apontar sua perspectiva como a única possível cria uma sensação de que não existe um senso comum mais. Essa atitude divide a sociedade entre grupos e dá início às falhas.

Com a luta pela vacina – em muitos países totalmente politizada – e o forte impacto na economia mundial, o que podemos esperar?
Há duas possibilidades. A primeira é de nós realmente conseguirmos parar o vírus. A outra é termos de aprender a viver com ele. É impossível prever o que vai acontecer, e quando.

Do ponto de vista somente econômico, a pandemia trouxe uma forte concentração de recursos, incluindo intenso movimento de venda de pequenas e médias empresas para multinacionais. Como o sr. avalia isso?
As empresas estão se transformando em commodities. São vendidas como pães, queijos ou bicicletas. Isso, a meu ver, é errado. Principalmente porque uma empresa significa pessoas trabalhando juntas, em prol do mesmo objetivo. O perigo é que as empresas grandes se tornem maiores a cada dia e as pequenas sejam engolidas pelas internacionais. Nós precisamos proteger nossas companhias de serem apenas vendidas. Quando você está trabalhando em uma empresa, você não está trabalhando para alguém, mas fazendo parte daquilo, participando do futuro dela. É preciso se segurar a esse propósito e não somente ao dinheiro.

O Brasil enfrenta queimadas históricas na Amazônia e no Pantanal. Qual é a sua avaliação sobre a política ambiental do governo brasileiro?
A pandemia do coronavírus é apenas uma entre uma série de crises. Uma questão anterior a essa é a crise ambiental, que ainda não está resolvida, apenas saiu dos holofotes com o coronavírus. É extremamente necessário que aprendamos a manter nosso clima e nosso ambiente em equilíbrio. As florestas não são importantes só para um país, mas para todo o mundo. Minha pergunta é: o governo brasileiro quer discutir isso em escala global e receber ajuda ou não? Eu tenho um pouco de medo de que esse desejo não exista. De que sejam apenas conversas, mas que a possibilidade de outros países ajudarem não esteja sendo realmente considerada.

Como sociedade, houve forte reação do movimento antirracista em todo o mundo, principalmente após a morte de George Floyd, nos Estados Unidos, em maio deste ano. Qual é a importância de atos como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em inglês)?
Algo muito importante no caso do George Floyd é que muitas pessoas em todo o mundo assistiram ao vídeo. A cena dele izendo que não conseguia respirar e nada sendo feito. As pessoas se sensibilizaram profundamente com algo que aconteceu a alguém que eles nem mesmo conheciam. Muitas pessoas se solidarizaram e isso é muito importante para que mudanças ocorram.

Como membro do parlamento alemão por uma década, o sr. criou medidas de engajamento dos cidadãos europeus. Qual a importância desse engajamento?
Quando entrei para o parlamento, disse a mim mesmo: não é o suficiente dizer às pessoas ‘votem em mim e vamos resolver o problema’. É necessário permitir que as pessoas participem, tomem decisões, se comprometam, façam propostas. Então
criei uma iniciativa na Alemanha permitindo que os cidadãos pudessem apresentar propostas feitas por eles, por problemas que afetam a vida deles. Do início da proposta até hoje foram mais de 8 mil iniciativas de pesquisas. Quando percebi o sucesso, decidi ir ao Parlamento Europeu e construir algo similar na União Europeia. O primeiro sucesso dessa iniciativa foi a Right2Water. Existe um problema sério de privatização da água na Europa, em que o abastecimento de água foi vendido a empresas privadas. A iniciativa – que teve mais de 1 milhão de assinaturas em pelo menos sete países – garantiu o direito de água para toda a população. Foi uma escolha democrática de todos os cidadãos da União Europeia.

O sr. fala sobre ‘o que realmente importa’. Qual é a sua resposta?
O que realmente importa pra mim é que nós, como sociedade, consigamos tratar todas as pessoas com dignidade. É desenvolver a liberdade, dia por dia. Tornar a sociedade mais democrática, onde as pessoas tenham voz, vivam em suas regras. É não fazer negócio contra o outro, mas com o outro. Além disso, e eu diria que mais importante, é pensar: ‘Como podemos, juntos, ajudar o planeta?’