Formado em jornalismo e administração de empresas, ele trouxe de sua vivência de dez anos como atleta do polo aquático o senso de disciplina e de trabalho em equipe. Há 20 anos, criou na Trevisan Escola de Negócios as pioneiras turmas na América Latina de formação de gestores no mundo do esporte. Em duas décadas, mais de 1 mil pessoas se formaram. Nesta entrevista, ele afirma que mesmo após a fracassada tentativa de criação da Super League pelos maiores clubes europeus de futebol as soluções a partir dos modelos organizados por ligas é uma tendência em marcha, e sem volta. Ele diz também que as pessoas olham muito para o lado do marketing esportivo, apenas. O lado mais glamouroso. Mas acredita que as grandes oportunidades hoje estejam mais vinculadas às áreas financeiras e do direito. “Muito além do marketing e muito além do futebol”, afirmou. “Como no caso dos e-sports, que crescem demais e precisam de muita gente boa para trabalhar.”

DINHEIRO – Por que deu errado a criação da Super League de futebol na Europa?
Fernando Trevisan – Não há dúvida de que o lançamento e a linha de comunicação foram um desastre completo. Mas isso é mais consequência de uma estratégia totalmente equivocada, na medida em que não levou em conta a opinião do principal ativo de um clube: o seu torcedor. E também porque partiu de duas premissas contrárias ao que levou o futebol a se tornar o esporte mais popular do mundo, com 4 bilhões de seguidores. Uma foi não existir linha clara de acesso e descenso. A outra foi ignorar o modelo piramidal de financiamento à base. O futebol vive muito a partir da formação em clubes menores.

Se a discussão do projeto fosse feita de outra forma ele teria vingado?
Não se pode ignorar que uma lógica econômica fundamentou a tentativa de criação da Super League [os clubes fundadores receberiam 3,5 bilhões de euros do J.P.Morgan, de acordo com a Agência Reuters]. Mas mesmo essa linha de financiamento não foi suficiente para fazer frente à reação de fãs locais desses times e outros stakeholders decisivos, como jogadores e treinadores. Nenhum deles foi ouvido. Ficou arrogante.

Morreu de vez?
Não. Essa é uma discussão que está na mesa e seguirá na mesa. Ela vem de uma tendência vista em várias indústrias, a de desintermediação. Os clubes vão cada vez mais se apropriar do seu valor, do seu produto, que hoje está em grande parte na mão de federações, confederações. Em âmbito doméstico isso já ocorreu. Existe uma tendência em marcha que vai ser a relação da lógica econômica com esse modelo piramidal e seus stakeholders, que incluem torcedores e jogadores. A discussão não está superada.

A indústria do esporte movimenta quase US$ 500 bilhões por ano, mas a Covid parece ter sido sua pior temporada.
A essência da cadeia produtiva do esporte é o evento. Sem a competição, sem o jogo, tudo o que está nessa cadeia não acontece. A bilheteria, a tv que, não transmitindo o jogo, deixa de pagar, o que leva patrocinador a querer renegociar… Tudo será questionado. E elas são as principais fontes de receita – bilheteria, direitos de transmissão e patrocinadores. E no caso do futebol, que representa metade de tudo o que o setor movimenta, tem ainda a questão dos atletas. Sem a vitrine dos jogos fica mais difícil fazer uma transação internacional e o mercado paralisa. Houve um choque no setor.

Qual deve ser o impacto?
O mercado como um todo deve cair de 15% a 20%. No futebol, a receita está muito atrelada aos direitos de transmissão e ao Match Day. Não só bilheteria, mas tudo relacionado ao entorno e à oferta de serviços ao longo do jogo. No Brasil, 15% da receita vem diretamente da bilheteria. Mas há também programa de sócio-torcedor, que se reduziu. Somando tudo, algo em torno de R$ 600 milhões deixaram de entrar em clubes brasileiros ao longo do ano passado apenas de bilheteria e sócio-torcedor. Como a receita total dos clubes é de R$ 6 bilhões, 10% deixou de acontecer. É muito.

Time brasileiro com maior número de torcedores, o Flamengo teve receitas de R$ 939 milhões em 2019. O Barcelona, no mesmo ano, fez seis vezes mais (840 milhões de euros). No Instagram, o time brasileiro tem 10 milhões de seguidores. Os espanhóis quase dez vezes mais (96 milhões). É possível aproximar essas realidades?
É. Pode paracer distante, mas é muito possível. Pegue a Premier League (Inglaterra). Há 30 anos, quando foi criada para cuidar do produto futebol, a Inglaterra tinha imagem péssima. Nos estádios, relacionada aos hooligans. Além disso, o futebol inglês era visto como algo feio, feito de cruzamentos para a área. E os campos eram terríveis. Os clubes se juntaram, houve um movimento do próprio governo para isso, e se criou esse novo ambiente. Hoje é a liga mais valiosa do mundo. Matéria-prima a gente tem. Somos os líderes em transações no mundo. São mais de 2 mil por ano. É questão de organização. Por isso a importância de que aqui os clubes se juntem para ter uma liga. Ela poderia nos posicionar para um novo padrão do produto futebol.

A transmissaão do produto futebol me parece muito antiquada e engessada para as novas gerações, que consomem conteúdos de forma mais fluida e fragmentada, não?
Sim. Pesquisas mostram que o interesse é maior pelos highlights dos jogos, porque é difícil conseguir a atenção por 90 minutos. É um consumidor diferente. Existe na Europa uma preocupação dos grandes clubes com a perda de interesse geral pelo futebol por outras atividades esportivas ou mesmo outras formas de entretenimento. No fim das contas, o futebol está dentro da indústria do entretenimento. E ali está em meio a um portfólio imenso de opções de lazer.

É uma preocupação de toda a indústria?
Sim. Atinge todos os players do produto futebol. A gente já viu que a interação mudou. Os clubes já criaram suas próprias TVs para mostrar bastidores, pós-jogo, entrevistas exclusivas com seus atletas. Esse é o desafio. Criar conteúdos para manter esse torcedor engajado. A pandemia acelerou isso. E de forma muito incipiente há o movimento de se aproximar dos e-sports, com os clubes criando suas equipes. Mas não me parece algo estratégico.

E aí aparece a eterna discussão do clube-empresa… Desta vez, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, promete fazer andar em maio a pauta (PL 5.516/2019) que cria a Sociedade Anônima do Futebol.
A discussão do clube-empresa é muito importante. Sendo uma associação sem fins lucrativos você não pode receber investidor, obviamente. Então, para alguns clubes é a única saída. Além disso, o modelo naturalmente incentiva uma melhor governança, traz fatores do mercado corporativo para o meio futebol. A maioria dos clubes da Europa é formada por empresas nos mais diferentes formatos. Aqui, 99% são entidades associativas. E ao ser uma entidade associativa é uma entidade política. Há incentivo para que o trabalho seja feito olhando no curto prazo.

O PL é a solução estruturante?
Claro que virar clube-empresa não significa que o problema seja resolvido, e o fato de ser clube associativo também não significa que seja mal gerido. Então, não é porque você virou clube-empresa que amanhã vai bater na porta um monte de investidores. Mas como ainda não existe o arcabouço legal que facilite todo o processo, isso acaba não disseminado no Brasil. Falta mesmo é o PL sair.