Há sete anos o empreendedor paulistano André Vellozo trabalha com monetização de dados. Sua empresa, a DrumWave, fica em Palo Alto, no Vale do Silício, a meca da tecnologia nos EUA. Nas últimas semanas, Vellozo ganhou notoriedade em virtude de um possível acordo da DrumWave com o Serpro, empresa pública ligada ao Ministério da Economia e responsável pelo processamento de dados do governo federal. O deputado Carlos Veras (PT-PE) solicitou informações sobre a parceria ao Ministério da Economia. Segundo o parlamentar, embora o acordo “coloque o Brasil na vanguarda de um movimento econômico mundial”, ele deixa margens quanto à “adequação aos parâmetros definidos pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)”. Sem detalhar o que pode decorrer dessa negociação, Vellozo falou à DINHEIRO sobre o que está em jogo no mundo dos dados.

Por que a propriedade e a monetização de dados interessam aos governos?
Neste momento, governos e empresas estão construindo a infraestrutura e os canais para criar o sistema financeiro da Economia de Dados no mundo. Países, empresas e cidadãos disputam soberania, poder de processamento e autonomia sobre dados. A indústria de tecnologia e de serviços financeiros também competem por esse protagonismo. Temas como regulamentação, privacidade, valor e especialmente a propriedade dos dados ganharam relevância. Mas algo muito maior acontece quase de forma despercebida. Pela primeira vez na sua história recente, o Brasil é um dos poucos países do mundo que está na vanguarda de uma das maiores revoluções tecnológicas que já ocorreram. Isso porque o sistema financeiro brasileiro é um dos mais sofisticados do planeta e pode se tornar o benchmark do que está por vir. A legislação visa proteger o titular do mau uso dos seus dados, mas ainda não vê o titular como um agente autônomo processador de dados. A LGDP, em tese, protege os seus dados. Mas se eles fossem seus de verdade, estariam com você. Ou, no mínimo, você teria autonomia sobre eles. Privacidade e propriedade de dados não são opostos, são complementares. Isso ainda não está claro.

O que faria do Brasil uma referência na propriedade de dados?
Os órgãos do governo brasileiro têm feito um trabalho muito consistente nessa direção. Não vale a pena politizar o tema, pois essa é uma questão de Estado. Estamos saindo de um megaciclo e entrando em outro. Megaciclo é um fenômeno de convergência que promove a mudança do paradigma tecnológico. Megaciclos fazem a disrupção do modelo de negócios da indústria de tecnologia e são capazes de criar valor e riqueza exponencial. Eles foram sempre liderados por um pequeno grupo de companhias que têm a coragem de remar contra a corrente por um bom tempo. O último megaciclo levou o PIB do planeta de US$ 7,3 trilhões (em 1977) para US$ 84,2 trilhões hoje. O próximo, deve levar o PIB global dos atuais US$ 84,2 trilhões para US$ 1 quatrilhão em 2062. O Brasil tem vantagens competitivas nessa corrida por ter um sistema financeiro que emprega muita tecnolgia de ponta. Se dado é um asset, o benchmark é o sistema financeiro.

Quais são os sinais de que estamos entrando em um novo megaciclo, como você denomina?
Quando tecnologias diferentes amadurecem e convergem, o valor criado por elas é direcionado para o consumidor, ou seja, para a sociedade. Disrupção, nesse sentido, é um sinônimo de democratização. No último megaciclo, a mudança de paradigma foi de hardware para software. Neste próximo, o paradigma muda de software para dados.

O dado pode ter tanto valor a ponto de criar riqueza de forma exponencial?
Sim, dado tem valor. Tudo o que fazemos (ou até o que não fazemos) gera valor e dados ao mesmo tempo. Dado e valor são duas faces da mesma moeda. O que estamos presenciando neste momento é a colisão de duas galáxias: as infraestruturas de big-tech e de big-finance. Bancos Centrais estão virando big-techs, ao mesmo tempo que bancos de varejo se transformam em marketplaces e marketplaces em bancos. Tudo isso em função do valor dos dados.

Você concorda com a tese de que dado é o novo petróleo?
Essa é uma metáfora antiga e um tanto forçada, mas ela tem seu mérito para explicar o que está acontecendo com o valor dos dados. Cidadãos de países do Oriente Médio, por exemplo, recebem um “salário” anual que vem direto do petróleo retirado em seu território. Basta nascer em um país rico em petróleo e o cidadão tem uma renda mínima cuja origem é esse recurso natural. Mas o exemplo que eu mais gosto é o de Fiji. Quem nasce lá têm direito a uma conta onde também é depositada a renda oriunda dos recursos naturais do país. Ao completar 18 anos, pode sacar esses valores. De novo: dados são um asset, e considerando que todo dado produzido por um país possa ser quantificado e avaliado, é bem possível fazer valor chegar aos cidadãos de uma forma ou de outra. Voltando à comparação com o petróleo, os dados têm a vantagem adicional de ser um recurso infinito.

O princípio da escassez é uma das condições para a existência de criptomoedas. Você acredita que elas serão os ativos financeiros do futuro?
Não é uma questão de acreditar. As cripto tentaram ser a mídia social do mercado financeiro. Da mesma forma que a mídia social se apropriou do discurso de descentralização dos grandes grupos de comunicação, as critpomoedas surfaram essa mesma onda falando em descentralizar os serviços financeiros. Mas a mídia social acabou esvaziando a “confiança” na informação. Viramos reféns de algoritmos, discursos de ódio e fake news. Foi quase a mesma coisa coma as criptomoedas, que estão esvaziando a confiança no sistema financeiro. A diferença em relação à mídia é que o mercado financeiro segue altamente regulado e existem os Bancos Centrais.

Poderia explicar melhor essa “poupança de dados” que decorre da monetização?
Toda economia do planeta foi montada em cima da poupança das pessoas. Se a gente concorda que caminhamos para uma Economia de Dados, e se você ainda não consegue monetizar seus dados da forma correta, a melhor coisa que pode fazer é abrir uma poupança de dados e começar a poupar para o futuro, pois você vai usar seus dados por razões pessoais, profissionais e financeiras. Não é uma alegoria. Esse tema é extremamente relevante. Muita gente ainda confunde monetizar dados com “vender” dados. Monetizar dados é dar ao dado transportabilidade, divisibilidade e resistência a fraude. O titular passa a ser dono do dado e tem autonomia sobre ele. Temos visto multas bilionárias de privacidade de dados sendo aplicadas a empresas na Europa e nos EUA. Você sabe para onde vai o dinheiro dessas multas? Para a União. O seu dado vazou, foi mal usado, o dinheiro da multa não volta para você.

Como fazer com que esse dinheiro chegue a quem de fato é dono do dado?
Usando a mesma tecnologia que já existe no sistema financeiro. Imagine que, se além de transferir o dinheiro dessa multas, os governos criassem um programa de renda através de dados. Transferir a propriedade do dado para o cidadão permitiria a cada um compartilhar seus dados da forma correta com o governo e com a iniciativa privada. Agora imagine se o governo brasileiro e a sociedade conseguissem criar o ambiente jurídico e institucional para atribuir propriedade aos dados, criando a “Lei Geral de Empoderamento de Dados”. Isso posicionaria o Brasil na liderança global da regulamentação de dados, garantindo acessibilidade, segurança e liberdade para usuários transacionarem seus dados como fonte geradora de renda.

Como isso transformaria a vida das pessoas, do ponto de vista financeiro?
Um brasileiro, ao nascer, deve R$ 31.700,00. Essa é a nossa dívida pública per capita hoje. Dependendo de em qual berço esse recém-nascido se deite, sua dívida desaparece ou aumenta. Com a poupança de dados, todos podem nascer credores — e não devedores. Ter o controle sobre o valor dos seus dados permite não apenas fazer uma poupança como também comprar, vender, investir… Você vai poder ajudar sua família com seus dados. Isso pode criar um Brasil melhor, menos desigual.

Você acredita mesmo que isso pode dar certo no Brasil?
O Brasil é impressionante, sabemos bem disso. Temos muito mais do que tudo o que precisamos. Um país com essas dimensões, recursos naturais e só 220 milhões de habitantes. Imagine China e Índia, com bilhões de pessoas para alimentar, educar e prosperar. O Brasil nunca produziu uma big-tech na sua história. A China tem o Alibaba, o TikTok; os EUA têm Google, Apple, Amazon, Microsoft. Para mim, tecnologia é cultura, é comportamento, e eu acredito mesmo que nós brasileiros temos muito a contribuir neste próximo megaciclo.