A inteligência artificial (IA) do Twitter, ao recortar uma imagem com dois rostos, um de pessoa branca e outro de pessoa negra, dava prioridade ao da branca ao expor a imagem na rede social. A IA do Facebook, em sua recomendação de tópicos, associou de forma errada um homem negro a um primata. São dois exemplos de uma ampla discussão, que não para de aumentar, sobre algoritmos racistas. “Precisamos de mais diversidade no controle da tecnologia”, afirmou Álvaro Machado Dias, professor associado livre-docente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), um dos nomes mais respeitados em neurociência do Brasil e sócio do Instituto Locomotiva de Pesquisa e Estratégia. Nesta entrevista, o especialista também fala das ações feitas para mudar esse quadro e o que esperar do metaverso, o ambiente que une o digital ao físico que ganhou projeção com o anúncio de seu uso pelo Facebook, de Mark Zuckerberg.

A inteligência artificial é racista?
A resposta pura e simples é sim. Agora, dando um passo atrás, os algoritmos são o conjunto de instruções que regem algum tipo de procedimento. O método mais comum hoje é ter um monte de gente classificando os estímulos. Por exemplo, treinar algoritmos para reconhecer faces. Quando o algoritmo erra, entende que os parâmetros usados não foram adequados e ele se modifica. Essas modificações não são controladas por seres humanos, elas emergem do bot. Então o algoritmo não é enviesado. O que é enviesado é o ser humano que vai alimentar o algoritmo.

Então estamos tratando o problema de maneira errada?
O discurso de que o principal problema está no algoritmo coloca o foco na tecnologia. Precisamos de mais diversidade no controle da tecnologia. É um ponto sério, porque esse universo é composto fundamentalmente por homens brancos. Esse é o ponto real.

E por que é assim?
Quem constrói as áreas de exatas no mundo ainda é uma elite masculina. E como ainda existe uma questão socioeconômica ligada à questão racial, esses vieses ligados à educação vão subindo e se entranhando nas estruturas da sociedade, nas profissões que pagam mais. É só ver quem são os CEOS: homens brancos. A taxa de mulheres e diversidade racial no C-Level é proporcional à taxa e vieses no campo do aprendizado de máquinas. É só questão de ascendência, tanto de gênero quanto racial. As pessoas que geralmente estão pensando o negócio têm mentalidade que não está alinhada com as questões de diversidade.

Você vê um movimento para mudar essa estrutura?
Existe um movimento e também uma forte pressão da sociedade. O mais relevante é que existem iniciativas dos gigantes da tecnologia para tentar melhorar o comportamento dessas ferramentas e reduzir o viés. Um deles é o AI Fairness 360, da IBM, que testa o algoritmo para ver se encontra vieses. Funciona como um seguro do algoritmo. Indica maneiras de mitigação dos equívocos. O Google tem uma iniciativa inteira que testa situações hipotéticas para verificar como o algoritmo se comportaria. São iniciativas assim que de fato mostram reflexão.

Essas ferramentas não são feitas também por homens brancos de elite?
São. É importante debater a velocidade em que se aumenta a diversidade no mundo da tecnologia, que é baixa. Podemos dizer que existe uma elite mais esclarecida e uma menos.

Esses vieses impactam de que forma a vida das pessoas?
Em anúncios de emprego, por exemplo. As mulheres recebem muito mais ofertas de empregos de enfermeira do que de engenheira. No gênero masculino é o oposto. E do ponto de vista racial, as ofertas de empresa voltadas a pessoas caucasianas são em geral os tranches que pagam mais. Na hora do vamos ver, esses anúncios convertem em oportunidades. Esse é problema endêmico. Tem impacto na inserção do capitalismo.

E isso reflete o pensamento da sociedade, não?
Sem dúvida. Aí vamos para uma discussão sobre o que rege a sociedade primariamente. Em uma visão marxista, diria que basicamente são as extensões de classe. Numa visão mais psicológica, diria que são desejos e aspirações. Todas têm sua verdade, mas, em última análise, sim, é o pensamento da sociedade.

Atualmente temos tecnologia abundante, que atinge o mundo inteiro massivamente. Isso não acelera esses pontos negativos?
É uma discussão imensa. Pelo progresso material da sociedade, a tecnologia de maneira geral é positiva. Ela aumenta o PIB. Quando começamos a usar essas ferramentas, entramos em processo de amplificar nossa capacidade natural. Agora, por outro ângulo, as tecnologias não são generalistas. Existem diferenças entre elas e impactam o mundo de formas diferentes. Quando surge uma nova tecnologia, disruptiva, quem se prejudica primeiro é quem tem uma tecnologia obsoleta. Isso gera problema grave de concentração de poder. Tem aumento da desigualdade, que não é para todas as regiões do mundo.

É de se esperar que vieses algorítmicos permeiem o metaverso, modelo que ganhou projeção recentemente pelo Facebook?
Metaverso é o ambiente físico permeado por experiências digitais, que se combina ao ambiente digital permeado por experiências típicas do mundo físico. O grande risco do metaverso é o acirramento dos vieses. Imagine duas pessoas usando óculos de realidade virtual que as transportam para o mesmo cenário digital. Um delas paga mensalidade e tem uma experiência fluída de tudo o que existe ali, enquanto a outra, sem capacidade de fazer o mesmo, tem sua experiência permeada por propagandas volumétricas que lhe sequestram a atenção e avatares sorridentes que lhe ofertam produtos por todos os lados. Pelo mesmo princípio, é bem possível que vieses raciais permeiem o metaverso.

Os algoritmos podem influenciar na felicidade das pessoas?
Temos três tipos de felicidades: a hedônica, de prazeres e satisfações; a eudaimônica, de missão, de propósito, de que a vida transcende o aqui e agora; e a da aventura psicológica. Todas as pessoas têm todas, mas com proporções distintas. O algoritmo impacta as pessoas mais ou menos a partir do modelo de felicidade delas. É mais negativo para quem tem mente mais libertária.