Para dimensionar o papel da Feira Preta na construção de referencial para a população negra brasileira bastam dois dados: 91% dos frequentadores negros já compraram itens segmentados para esse público e 98% valorizam produtos e serviços que incorporem a temática negra. Os dados são de uma pesquisa do Instituto Locomotiva. Poderia ser suficiente para Adriana Barbosa, a fundadora do evento e CEO do PretaHub, verdadeiro ecossistema do empreendedorismo negro no Brasil. Mas nada parece bastar para ela. “Estamos falando de equidade racial de uma maneira mais profunda apenas nos últimos três anos”, afirmou à DINHEIRO.Mas ela enxerga que o tema ocupou a agenda e não terá volta. Até porque ainda há muito a ser feito. Em outra pesquisa do Locomotiva (As Faces do Racismo), dados mostram que trabalhadores não negros ganham, em média, 76% a mais que funcionários negros. Adriana junta isso tudo, suas reflexões, a Feira, o empreendedorismo e a história do negro no Brasil em Preta Potência – Como a resistência e a ancestralidade me ajudaram a criar o maior evento de cultura negra da América Latina, livro que sai agora pela HarperCollins.

ISTO É DINHEIRO – Qual a necessidade de ações assertivas como o programa de trainee exclusivo a negros do Magalu?
Adriana barbosa – Falei para a própria Luiza Trajano que foi um passo ousado e extremamente necessário. Ela é vanguarda e acaba sendo um farol. Alguém precisa puxar essa história. Num país como o Brasil, com 400 anos de escravidão, a gente precisa de ações mais extremas. Estamos falando de equidade racial de uma maneira mais profunda somente nos últimos três anos.

No mundo corporativo essa equidade no Brasil está muito atrasada?
Sim. Quando faço uma comparação com Estados Unidos, sim. Mas quando faço com outros países da América Latina, o Brasil é vanguarda. Temos muitas coisas a resolver, mas também precisamos celebrar o quanto a gente evoluiu. Se hoje a gente pode falar do negro dentro do contexto corporativo foi porque lá atrás houve um processo de inclusão de negro nas universidades. Se não existissem essas ações afirmativas não haveria essa mão de obra. Claro que a gente ainda fala muito de conscientização, e precisamos ir mais para a ação. É uma perspectiva de mudança de cultura. Vamos criar um novo Brasil e esse Brasil precisa conhecer a sua história. E ela está atrelada à questão racial.

Do ponto de vista econômico, como flui o crédito para o empreendedor negro durante a pandemia?
O crédito sempre foi um calcanhar de Aquiles. Não quero usar a palavra tabu, mas é uma questão que a gente precisa trabalhar. Primeiramente porque boa parte do empreendedor negro no Brasil é o micro. Em segundo, boa parte dos investimentos está atrelado a empresas de tecnologia, onde a gente tem uma ausência de empreendedores negros. E existe ainda uma questão importante na hora de apoiar o pequeno. Exemplo: no Banco do Povo. Você não pode ter seu nome negativado. Na pandemia os empreendedores negros não estavam produzindo nem vendendo. Aí uma conta em atraso impedia o acesso a esse recurso. Esse contexto não foi reconhecido. Então muito do apoio que chegou não veio dos bancos ou das instituições. Veio de alianças de organizações negras, da área de responsabilidade social das empresas. Apenas algumas fintechs conseguiram olhar para isso.

Para a mulher negra que vai empreender a situação torna-se ainda mais dura.
A intersecção entre raça e gênero mostra que as mulheres negras são empreendedoras há muito tempo, né? Porque elas não conseguiam chegar ao mercado de trabalho formal. Empreender era a única opção. É a necessidade, do tipo você precisa se virar, vender hoje para comer amanhã. Agora você já tem um recorte específico, de mulheres jovens negras que empreendem não por necessidade, mas por oportunidade. Numa pesquisa que a gente fez aparecem três perfis: empreender por necessidade, por vocação (aquele que não que estar numa empresa) e por engajamento (querem empreender para atender a população negra). Que é o que a gente chama de Black Money.

Existe como quantificar o dinheiro que gira e vai para o empreendedor negro?
A gente não tem esse dado preciso, pelo lado do empreendedor. O Black Money tem um conceito, que é a produção e o consumo. Você precisa ter negros produzindo e precisa ter negros consumindo. Mas quando a gente olha para as cadeias de produções no Brasil você não tem muitos negros. Com acesso a máquinas, para produção em grande escala. Se você me perguntar seu eu vivo 100% de Black Money a resposta é não. Porque ao comprar uma margarina, uma pasta de dentes, não tem gente preta produzindo em escala industrial. Tem numa escala artesanal, local. Não com acesso a máquinas, ou no ecossistema de tecnologia. Olhe para esses unicórnios e me diga um preto que está lá.

Este ano será o da 20a edição da Feira Preta. No ano passado o evento ocorreu de forma on-line. Como será a versão 2021?
Híbrida, se for possível. A Feira de 2020 nos trouxe um processo interessante de aprender a fazer o evento de forma digital. Gastava dinheiro com palco, bombeiro, ambulância, alvará. De repente mudou para contratar equipe audiovisual, plataforma de streaming. Tivemos sete produtoras negras de audiovisual. Foram mais de 100 conteúdos em 22 dias de programação. Conseguimos 1,7 milhão de pessoas que se conectaram a esses conteúdos. No Mercado Livre, que foi nosso parceiro para escoamento, levamos mais de 1 mil produtos. Isso trouxe para a gente escala. E a gente ainda fez uma campanha dizendo se você quer de fato ser antirracista vá para a ação, consuma esses produtos.

A população negra movimenta R$ 1,7 trilhão. O papel da Feira Preta não é apenas econômico, porém. A questão da afirmação é DNA da Feira, certo?
Sim. Na próxima edição haverá um prêmio, o Movimentos Criativos, para a cadeia produtiva da indústria criativa – game, audiovisual, moda, decoração. Para reconhecer as pessoas que ajudaram a construir essa história, o mercado cultural nessa questão racial.

Como é atuar num País em que o discurso do governo federal é o oposto do seu?
Eu vejo que o processo de transformação é da sociedade civil e da iniciativa privada e esse tema da questão racial extrapola a população preta. A população não negra começa a olhar para isso. Falta a perspectiva pública, que dá escala? Falta. Mas não dá para ficar dando murro em ponta de faca. No ano passado fizemos a Feira com a Lei Rouanet. Durante anos eu aprovei projeto e nunca consegui captar. Foi a primeira vez. Isso só foi possível porque as empresas olharam para a questão racial. Não vai existir a dimensão pública sem a iniciativa privada. E quem pautou a questão dentro das empresas foi o movimento negro organizado. É tudo sistêmico.

Quais os erros você cometeu?
Errei muito. Três em especial. Um é estudo. Existe uma ciência no empreendedorismo. Deveria ter feito isso mais nova. Se a minha filha quiser empreender vou falar ‘vá estudar isso agora’. O segundo foi quando chegamos aos 15 anos de Feira e quebramos. Por não enxergar que já tinha chegado ao objetivo, a nossa visão e missão. Falou ter reavaliado. Por fim, a tecnologia. Sem compreender a lógica dos algoritmos a informação não chega.

Bisavó, avó, mãe… Você sempre relaciona o que traz dessas mulheres. Qual legado gostaria de passar para sua filha?
Quando minha avó vendia quentinhas (marmitas) falava ‘coloque essa faixa perto de obra porque são eles vão me ligar’. Mostrava conhecimento sem ter frequentado qualquer escola. Ao começar o AfroLab, programa de formação de empreendedores, levei uma historiadora. E ela mostrou por que Portugal escolheu os africanos. Não foram só escravizados, eles detinham saberes. O legado que quero deixar para minha filha é esse. Ela saber que vem de um lugar de realeza, de conhecimento, a ancestralidade atrelada às tecnologias pretas.