A capacidade de atendimento no Hospital Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, tem variado de acordo com a crise fiscal fluminense. Dos pouco mais de 500 leitos disponíveis, a direção já interrompeu internações pela metade, até chegar ao nível crítico de apenas 70 vagas, num dos picos das dificuldades. O mais recente anúncio, no início deste mês, limitou o total de leitos ativos para 180 unidades, 70 a menos do que aqueles em operação em novembro. A redução é uma forma de garantir a segurança do atendimento em face dos desfalques na equipe. “Há funcionários sem receber salários há três meses”, afirma Jorge Luis Mattos de Lemos, coordenador geral do Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Públicas do Rio de Janeiro (Sintuperj). “Os trabalhadores não têm mais dinheiro para se deslocar ao trabalho.”

O quadro se repete na universidade. Técnicos estão em greve há mais de um ano, quase o mesmo período em que o refeitório passou fechado. Diante das incertezas sobre os repasses, é impossível prever quando as aulas, que já estão atrasadas, começarão em 2018. Trabalhadores do hospital convivem ainda com o fantasma de interrupção plena. “Só há abastecimento graças à fada madrinha do Ministério Público”, afirma Lemos, destacando os arrestos conquistados na Justiça. Não à toa, a Uerj se tornou um símbolo do desajuste das contas estaduais. A condição atual da instituição, pouco mais de um ano após o reconhecimento oficial da calamidade financeira fluminense, mostra que o caminho é longo até que o Estado recomponha a estabilidade e a capacidade de prestar serviços essenciais.

Na sangria: com salários atrasados, governo fluminense foi o primeiro a aderir ao programa de socorro federal, que garantirá alívio de até R$ 94 bilhões aos cofres estaduais (Crédito:Tânia Rêgo/Agência Brasil e AP Photo/Silvia Izquierdo)

Ao lado do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais também completam um ano desde que decretaram estado de calamidade financeira. Os dois primeiros acertam os últimos detalhes de um plano de socorro do governo federal, enquanto a administração mineira busca caminhos alternativos. Chamado de Regime de Recuperação Fiscal (RFF), o socorro oferece o benefício de suspensão de pagamento da dívida com a União por três anos, mas cobra uma série de exigências aos governadores, como uma rodada de privatizações e regras como o teto dos gastos. Para o Rio de Janeiro, a entrada no programa, já aprovada, representa uma folga de até R$ 94 bilhões. No Rio Grande do Sul, que está em negociação, o alívio seria equivalente a R$ 18 bilhões.

O suporte da União é considerado essencial, mas não suficiente parar reverter o quadro. As estatísticas recentes ainda são preliminares, mas os sinais são de piora. O Rio de Janeiro, que já havia estourado o limite de endividamento da Lei de Responsabilidade Fiscal no ano passado (veja gráfico abaixo), viu o passivo aumentar. O número atual significa que, se fosse possível destinar toda a receita para o pagamento da dívida, o Estado levaria dois anos e três meses para zerar o saldo. O que torna a fotografia ainda mais calamitosa é a combinação do elevado endividamento com um alto nível de despesas. Somente a folha salarial consome mais de 70% das receitas nessas administrações. Outros 13% são consumidos por juros e os menos de 20% restantes devem ser suficientes para o custeio da máquina e investimentos. A conta não fecha. Isso explica por que os governadores estão sendo obrigados a fazer a gestão “na boca do caixa”. A cada hora um credor é escolhido para receber.

Na UTI: hospital universitário Pedro Ernesto reduziu o atendimento por falta de pessoal. Estado diz que vai regularizar pagamentos com o ingresso de verbas federais (Crédito:Andre Melo / Agência Tempo / Agência O Globo)

Cálculos da equipe econômica da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) ilustram o problema. O Estado entrou 2017 com um desfalque de R$ 11,1 bilhões no caixa, o equivalente a cerca de 24% da receita. No Rio Grande do Sul, a diferença foi de R$ 14,5 bilhões. Ou seja, o Estado não só esgotou o limite do cheque especial, como está sem dinheiro para as contas que estão vencendo. A indicação é de um agravamento no aperto. Dados levantados pelo pesquisador Liderau dos Santos Marques Junior, da Fundação de Economia e Estatística (FEE), do Rio Grande Sul, mostram que o Estado acumula, nos dez primeiros meses, uma insuficiência de recursos de R$ 13,3 bilhões, ante R$ 12,2 bilhões em igual período do ano passado. As despesas seguem crescendo acima das receitas. “O Estado encontra-se numa situação crítica”, diz Marques. Em Minas, o governo enfrenta dificuldades em pagar o 130 salário. Em 2018, o Estado deve ter um novo déficit, de R$ 8,2 bilhões.

Nos últimos meses, as administrações se mobilizaram por medidas de ajuste. Os gaúchos aprovaram uma lei de responsabilidade fiscal estadual, a extinção de 11 fundações, um conjunto previdenciário (adoção do teto do INSS e aumento da alíquota para servidores) e o aumento do ICMS. Com exceção do fim das fundações, todas também foram adotadas pelo Legislativo fluminense. Já Minas Gerais aposta na negociação para que o governo federal reconheça uma dívida de repasses não efetuados da Lei Kandir (de incentivo as exportações). O Estado alega ter R$ 135 bilhões a receber da União. E quer vender 49% das ações da Codemig.

Rio Grande do Sul: servidores protestam contra o atraso de salários. governo gaúcho ainda negocia os termos da adesão ao programa de socorro federal (Crédito:Divulgação)

A Secretaria de Fazenda fluminense destaca medidas adicionais para o equilíbrio, como a adoção de sistemas de autorregulação que melhoram a eficiência da cobrança de pendências tributárias. Para a Pasta, contrapartidas previstas no plano de recuperação federal, como redução dos incentivos fiscais, aumento da contribuição previdenciária e o teto de gastos, conduzirão o Estado para a sustentabilidade. “O Regime de Recuperação Fiscal vai permitir um reequilíbrio sustentável e de longo prazo no Estado”, diz a Fazenda, em nota.

Apesar de uma melhora na relação entre a receita líquida e a despesa com pessoal, a Secretaria reconhece os atrasos de salários de servidores referentes a setembro, outubro e o 130 de 2016, situação que deve ser resolvida com o ingresso dos recursos oriundos do plano, diz a Pasta. Nem todas as propostas passam pelo crivo político. O Rio Grande do Sul coleciona derrotas nas tentativas de privatizar três estatais. “O Estado tem um exagero de estatais e insiste, por motivos ideológicos, em se manter presente nas mais diversas áreas”, afirma o líder do governo no Legislativo, Gabriel Souza (PMDB). “Precisa focar nas áreas mais importantes e não consegue porque está envolvido nas que não deveria.” As privatizações são necessárias para a adesão ao socorro federal.

Passando o chapéu: em reunião com Maia, em Novembro, governadores cobraram projetos que ampliam verbas estaduais (Crédito:Divulgação)

Para resgatar a sustentabilidade dos cofres estaduais, será preciso atacar desequilíbrios estruturais. A Previdência é o principal deles. Nos três Estados, é a conta dos inativos que sufoca a capacidade de prestar serviços. Somente em 2016, os aportes dos Tesouros estaduais aos sistemas de aposentadoria somaram R$ 79,5 bilhões, uma conta que não para de crescer. “Ou se resolve o gasto com o pessoal ou não tem saída”, diz Marcos Lisboa, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e presidente do Insper. Assim como outros especialistas, Lisboa sugere uma atuação política dos governadores para defender a reforma federal e medidas no Judiciário que dão segurança institucional para atacar o gasto com o pessoal, como a redução de jornada e a alta da alíquota previdenciária. “No limite, os Estados vão enfrentar uma agenda igual à da Grécia.”

No estudo sobre os Estados, a Firjan elenca medidas adicionais de ajustes. Nos cálculos da entidade, um programa de concessões, privatizações e vendas de ativos poderia levantar R$ 22,4 bilhões no Rio de Janeiro se concluído na totalidade. Além disso, há sugestões de regras para a geração de superávits nos Estados e de limites para os restos a pagar. Mesmo se adotadas na íntegra, não há expectativa de melhora imediata. “Certamente esses Estados vão ficar no fio da navalha nos próximos anos”, afirma Guilherme Mercês, economista-chefe da Firjan. “Recuperação fiscal é algo demorado.” Procuradas pela DINHEIRO, as secretarias de Fazenda mineira e gaúcha não responderam aos pedidos de entrevista.