Em dificuldades financeiras, a pequena siderúrgica Sinobrás, do grupo Aço Cearense, apresentou, no ano passado, uma proposta nada trivial ao Conselho de Administração da Norte Energia, controladora da usina de Belo Monte: fornecer aço para a obra como forma de quitar suas dívidas societárias. O inusitado pedido foi aprovado no colegiado, mas não bastou para encerrar as pendências. Enquanto o grupo Aço Cearense preparava um processo de recuperação judicial, a Sinobrás – dona de 1% do empreendimento – acumulava uma parcela em aberto de R$ 36 milhões com a usina.

A Sinobrás não está sozinha na lista de inadimplentes de Belo Monte. A Funcef, fundo de pensão da Caixa, precisava honrar R$ 202 milhões, até março, para manter sua fatia de 10% na hidrelétrica. Já a Cemig vem conseguindo acompanhar as suas obrigações societárias, mas diante da necessidade recorrente de aportes, decidiu incluir sua participação indireta de 12% na Norte Energia no plano de venda de ativos. São apenas alguns exemplos dos problemas em torno do megaprojeto hidrelétrico no Pará, cujas obras estão atrasadas.

Além das polêmicas que pesam sobre a quarta maior hidrelétrica do mundo, em questões como suspeitas de favorecimento a empreiteiras e impactos socioambientais, o investimento no negócio de Belo Monte enfrenta uma série de contratempos. Há impactos para todas as partes envolvidas e um clima de tensão entre os acionistas. A origem de boa parte da confusão está relacionada à parcela de 20% de energia do projeto destinado ao mercado livre. Como os preços não atingiram o valor previsto no plano inicial, a usina não conseguiu vender essa parcela e ficou descontratada, no jargão do setor.

A pendência travou a liberação de uma parcela de R$ 2 bilhões do financiamento do BNDES, que seria usado para a conclusão da obra. Sem o crédito do banco estatal, os sócios foram obrigados a injetar mais dinheiro do próprio bolso no negócio ou a buscar novos financiamentos, o que gerou uma insatisfação generalizada. Desde então, os acionistas estão em conflito. Dono de metade da usina, o grupo dos sócios privados, que inclui os fundos de pensão Funcef (Caixa) e Petros (Petrobras), a Vale, a Cemig, a Light, a Neoenergia e os minoritários J Malucelli e Sinobrás, tenta obrigar a Eletrobras a comprar a energia excedente pelo preço estabelecido inicialmente. Eles se embasam numa cláusula do contrato que trata do direito de compra dessa parcela de energia por parte da estatal.

Cofre bloqueado: BNDES não liberou uma das parcelas do empréstimo para Belo Monte por causa de inadimplência (Crédito:Vanderlei Almeida/AFP/Getty Images)

Para os privados, o termo indica uma obrigação, enquanto a Eletrobras diz se tratar de um direito, que pode ou não ser exercido. A disputa gerou um processo de arbitragem, ainda não encerrado. Enquanto a divergência se estendia, as obras exigiam mais e mais recursos dos sócios. Somente em 2016, o valor total injetado pelos acionistas chegou a R$ 3,8 bilhões. Neste ano, a conta continuou a avançar e somava R$ 549 milhões até o primeiro trimestre, último dado disponível.

O problema é que o custo desses aportes, em geral, é maior do que os recursos levantados junto ao BNDES, impactando o retorno do projeto. Um representante de um dos sócios afirmou à DINHEIRO que a taxa prevista, inicialmente em torno de 9%, estaria próxima de 6%. Num levantamento feito pela Eletrobras, que possui mais de uma centena de Sociedades de Propósito Específico (SPEs) em operação, foi constatada a mesma situação em boa parte dos projetos. Cerca de 80% das SPEs estavam distantes da taxa de retorno prevista originalmente.

As dificuldades se espalham por diversos negócios do grupo e se refletem em Belo Monte. Com problemas de caixa, a Chesf, subsidiária da Eletrobras, dona de uma fatia de 15% na Norte Energia, ficou sem fôlego para acompanhar as chamadas extras de capital ao longo de 2016. Ficou inadimplente por cerca de seis meses e acumulou uma fatura em aberto de R$ 268 milhões com a usina.  A conta só foi liquidada com a ajuda de empréstimos concedidos pela holding. Segundo a Chesf, a dificuldade de caixa foi causada por bloqueios de processos judiciais. Procurada, a Eletrobras não respondeu até o fechamento desta reportagem.

A inadimplência azedou a relação com os outros sócios, que passaram a demandar sanções contra a Chesf. Após seguidas cobranças, a Petros exigiu, no conselho, a suspensão dos direitos de votos da subsidiária. Numa das assembleias, outro grupo de acionistas, incluindo a Cemig e a Light, apontou o risco de os atrasos dispararem cláusulas de vencimento antecipado de parcelas do BNDES, e decidiu tomar medidas judiciais para que a subsidiária regularizasse a situação. A disputa deu origem a outro processo de arbitragem, em andamento.

No conselho da usina, os fundos de pensão estatais demonstram a postura mais enérgica entre os sócios. Funcef e Petros passaram a votar contra a aprovação de novos aportes de capitais, mas foram vencidos nas novas convocações. O impasse levou a Funcef a tomar uma solução mais radical. A fundação parou de depositar as parcelas que deveria e também engrossou o grupo de devedores. Mais uma vez, a situação foi questionada por outros sócios. No conselho da Light, representantes dos minoritários cobraram penalidades mais duras contra os inadimplentes, como a diluição das participações. Procurada, a Funcef não comentou.

A Petros afirma que segue as decisões aprovadas nas assembleias da Norte Energia, conforme o acordo de acionistas. Somados todos os aportes feitos desde o início do projeto, os sócios já haviam destinado quase R$ 12 bilhões à Norte Energia até o primeiro trimestre. No período, somente Sinobrás e Funcef ainda permaneciam com pendências. Procurada, a siderúrgica cearense afirmou ter retomado o pagamento dos aportes e disse estar renegociando as parcelas em aberto. “Continuamos acreditando que o projeto é importante para a nossa região e para o País, por isso prosseguimos investindo”, afirma, em nota, a Sinobrás.

Mesmo sem desembolsos do BNDES em 2016 e neste ano, os empréstimos do banco de fomento à Norte Energia já alcançam cerca de R$ 26 bilhões. Além da inadimplência, a necessidade de aportes adicionais causou rusgas entre os sócios. A Petros registrou uma baixa de R$ 688 milhões no balanço de 2016 referente a Belo Monte. Endividada, a Cemig teve de colocar sua participação à venda. Pela fatia de 12%, a estatal mineira espera conseguir R$ 1,39 bilhão. O movimento deve ser seguido por outros sócios – ao menos a Funcef avalia se desfazer do ativo.

Euforia precipitada: integrantes do consórcio vencedor comemoraram a vitória no leilão de Belo Monte, em 2010 (Crédito:Divulgação)

OPERAÇÃO BILIONÁRIA  Baseada num polêmico projeto da década de 1970, a usina de Belo Monte foi leiloada em 2010, com investimentos estimados em R$ 19 bilhões. A obra, que chegou a mobilizar pouco mais de 20 mil trabalhadores, deveria ter sido concluída em 2015. Os investimentos já superam os R$ 36 bilhões, com metade das 24 turbinas em operação. A entrega final da hidrelétrica está prevista para 2019, com potencial para atender, no pico, uma população de 60 milhões de habitantes.

O gigantismo de Belo Monte carrega polêmicas à sua altura. Greves, protestos de índios, paralisações determinadas pela Justiça e problemas ambientais atrasaram o projeto (leia reportagem ao final da reportagem). Num pleito à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a Norte Energia pediu um perdão de pouco mais de um ano (445 dias) sobre o cronograma do contrato. Em Altamira, um dos 11 municípios afetados pelo projeto, os índices de violência dispararam.

Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou sobrepreço de R$ 3,2 bilhões na obra, e um acordo de leniência fechado pela Andrade Gutierrez, no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), reconheceu o cartel na construção. Como resultado de uma investigação interna feita pela Eletrobras, a Norte Energia registrou uma baixa de R$ 183 milhões por perdas com sobrepreço na construção. Para o futuro, a empresa teme as consequências dos atrasos nas linhas de transmissão, que levarão a energia de Belo Monte ao resto do país.

Procurada, a Norte Energia não quis comentar. Apesar dos percalços, especialistas reconhecem a importância da usina. “Se um país quer crescer, precisa de energia” afirma Daniel do Valle, sócio da área de energia do escritório de advocacia ASBZ. “Do ponto de vista de segurança energética, é um projeto bem-vindo, mas como tudo, tem seus problemas.” No curto prazo, a usina busca alternativas. Na tentativa mais recente de resolver o contrato do mercado livre, a Norte Energia avaliou uma operação com o grupo Bolognesi.

A usina térmica de Rio Grande tem o contrato, mas não conseguirá entregar a energia, enquanto Belo Monte tem a energia, sem o contrato. No inicio de agosto, a Norte Energia protocolou uma consulta na Aneel para saber se o negócio era possível. A agência arquivou o processo alegando impossibilidade de se posicionar sobre uma situação abstrata, deixando claro que responderia caso um pedido formal fosse feito. Até o momento, porém, nenhum protocolo havia sido registrado. E os sócios continuam brigando.


Tragédia à beira rio

Por Rodrigo Caetano

Quem chega a Altamira pelo lado oposto ao do aeroporto, saindo da Transamazônica na Rodovia Ernesto Aciole, encontra, na entrada da cidade, o Rio Xingu, à esquerda, e um grande calçadão à direita, no igarapé. Parece coisa de cidade europeia, com jardins e passeios às margens do rio. Essa é uma área nova da cidade, resultante das obras da usina de Belo Monte. Antes, o calçadão era ocupado pelas casas dos ribeirinhos, estilo palafitas. Todos foram indenizados e remanejados para os chamados reassentamentos urbanos, ou RUCs, construídos pela Norte Energia. São bairros novos, que parecem coisa de cidade americana, com suas casas iguaizinhas. Progresso. Só que a vida piorou.

É difícil encontrar alguém que fale bem dos RUCs. Apesar de novos, os bairros estão feios. As casas têm problemas estruturais e conceituais. Nos quintais, os ribeirinhos reclamam de não conseguir plantar, pois o solo foi muito compactado. E há o problema da distância do rio. “Meu pai costuma ficar sentado na canoa, no seco”, afirma Luciene Silva, moradora da Vila Ressaca, comunidade ribeirinha a meia hora de Altamira. “Antes ele morava do lado do rio, agora não consegue mais pescar.” Sua indenização, diz Luciene, foi de cerca de R$ 40 mil. Mas a remoção custou sua saúde. “Quem conheceu pai há cinco anos e vê ele hoje, chora.”

Muitos dos RUCs foram construídos a quilômetros do rio. Mas esse não é o único problema social de Altamira. Apesar de o PIB da cidade ter se multiplicado por quatro, mais de 80% da população ganha menos de dois salários mínimos. E a violência explodiu. A taxa de homicídios subiu de 60,9 para 124,6 por 100 mil habitantes, entre 2010 e 2015. “Belo Monte deixou Altamira mais pobre”, diz Antonia Melo, coordenadora da ONG Xingu Vivo. “As famílias de ribeirinhos hoje são um peixe fora d’água. Não têm o rio, a canoa, ou o anzol. Foram tragicamente jogadas no lixo.”