Dos três cargos de comando local que ocupou recentemente na General Motors, o economista Carlos Zarlenga tem motivos para se lembrar para sempre de um em especial: a chefia na Argentina, seu país de origem. Sua nomeação coincidiu com a posse do presidente Mauricio Macri, que pôs fim a um período populista de 12 anos nas mãos da família Kirchner. Após um ano na posição, Zarlenga foi alçado à presidência do grupo no Brasil, em setembro de 2016, mas agora ele retoma os laços de origem, ao assumir a recém-criada GM Mercosul.

A divisão passará a incorporar os mercados argentino e brasileiro, que vivem desafios semelhantes. Macri, assim como o presidente Michel Temer, vem implementando políticas de ajustes, cujo principal objetivo é tirar o país da recessão. A estratégia de ambos inclui a abertura comercial, o que deve facilitar a estratégia da montadora americana e de inúmeras empresas que dependem dos dois maiores mercados da América do Sul. Brasil e Argentina são parceiros históricos, mas a relação vinha experimentando percalços nos últimos anos.

Carlos Zarlenga, presidente da GM Mercosul: com unificação das operações no brasil e na argentina, montadora espera fortalecer região como plataforma de exportação
Carlos Zarlenga, presidente da GM Mercosul: com unificação das operações no Brasil e na Argentina, montadora espera fortalecer região como plataforma de exportação (Crédito:Eitan Abromovich/AFP)

O setor automotivo, principal item da pauta, ilustra o problema. Um acordo bilateral do início da década de 1990 previa tratamento favorável para os produtos de ambos os países, convergindo gradualmente para o livre comércio. Não só o status foi adiado seguidas vezes como iniciativas recentes tentaram frear a entrada de itens da cadeia produtiva. Entre os executivos de montadoras com fábricas em ambos os países, é comum a visão de que se tratam de parques fabris complementares. Mas essa percepção sempre ficou ao sabor das políticas adotadas pelos governos.

Em visita ao Brasil na terça-feira 7, Macri buscou sinalizar um novo capítulo na parceria indicando que ambos devem se apoiar para superar a recessão. “Nossa relação com o Brasil ficará ainda melhor”, disse Macri à DINHEIRO. Para ilustrar a nova condição de sociedade, brincou com a rivalidade no futebol. “No futebol queremos ganhar, mas nos outros [campos] queremos trabalhar juntos”, afirmou em declaração conjunta com o presidente Michel Temer. Para a GM, a convergência conjuntural contribuiu para colocar em prática o discurso de complementaridade, reduzir custos e fortalecer a região na disputa por outros mercados.

“Nossas operações no Brasil e na Argentina sempre foram muito eficientes, mas precisamos ser competitivos no mercado global”, afirma Carlos Zarlenga. A reestruturação da montadora repete um movimento da gigante de navegação Maersk, que uniu o Brasil ao grupo de Argentina, Uruguai e Paraguai no ano passado. Segundo Antonio Dominguez, diretor da empresa para a região, as economias brasileira e argentina são ainda muito fechadas, mas vivem um momento único de convergência. “A agenda econômica é muito parecida, estão falando de abertura comercial e acordos de livre-comércio.”

Nas previsões da GM, que conquistou a liderança no Brasil em 2016, os dois países somam um potencial de três milhões de veículos em 2017, um crescimento de 7,5% em relação a 2016. Para Zarlenga, mais do que nunca a integração total no setor é inevitável. Em negociação no ano passado, os dois lados estabeleceram como 2020 o prazo para alcançar o livre comércio. “O mais importante para o crescimento do Mercosul como indústria forte e competitiva é a criação de políticas que suportem essa premissa.”

A cadeia automotiva é um dos temas sensíveis da relação e mostra como as práticas nem sempre são fiéis ao discurso. Um programa para incentivar a compra de autopeças locais entrou em vigor na Argentina no final do ano passado, numa tentativa de forçar maior equilíbrio na balança. Na prática, foi uma iniciativa semelhante à política do Inovar-Auto, criada pelo Brasil em 2012, que também exigiu índices de nacionalização nos carros e estimulou investimentos nas fábricas brasileiras. O envio de autopeças e veículos ajudam a explicar o superávit de R$ 4,3 bilhões a favor do Brasil no comércio bilateral no ano passado, o maior desde 2011.

Uma possível revisão do acordo automotivo preocupa as montadoras instaladas no Brasil. “Seria um enorme retrocesso”, afirma Antonio Megale, presidente da Associação Nacional das Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). “Não faz sentido mudar um acordo que vale até 2020 e dá previsibilidade para todo o setor.” Oficialmente, a questão automotiva não foi tratada na visita de Macri. Ficou restrita às reuniões feitas pela equipe técnica na semana anterior, assim como as negociações do lado brasileiro para incluir o açúcar na união aduaneira. Em reunião fechada, apurou DINHEIRO, Temer falou da importância de a Argentina comprar mais aviões da Embraer, enquanto Macri ressaltou a necessidade de homogeneizar normas sanitárias.

AMIGOS, AMIGOS, NEGÓCIOS À PARTE: em almoço com o presidente Michel Temer no Itamaraty, na terça-feira 7, Macri prometeu ampliar as parcerias no comércio bilateral. Vai cumprir?
AMIGOS, AMIGOS, NEGÓCIOS À PARTE: em almoço com o presidente Michel Temer no Itamaraty, na terça-feira 7, Macri prometeu ampliar as parcerias no comércio bilateral. Vai cumprir? (Crédito:Beto Barata/PR)

Na pauta oficial do encontro, os presidentes trataram de medidas para reforçar as trocas bilaterais, fortalecer o Mercosul e expandir as parcerias do bloco com outras regiões, como o México. Os dois lados também prometeram resolver os temas polêmicos. “Não há nenhum tabu, como disse o presidente Temer”, afirma o embaixador da Argentina no Brasil, Carlos Alfredo Magariños. “Vamos fazer uma integração franca, resolver os problema e remover as barreiras pendentes.” (leia entrevista). Setores brasileiros que mais sofreram com as travas às importações no passado relatam melhoras, embora o governo Macri tenha adotado algumas barreiras pontuais ao longo de 2016, como a exigência de licenças não automáticas para a liberação dos produtos.

A fabricante de calçados Democrata decidiu retomar a expansão no varejo argentino. Nas próximas semanas, abrirá a segunda loja no país vizinho. A primeira foi inaugurada em 2010, mas os planos tiveram de ser interrompidos devido às dificuldades na fronteira no período da presidente Cristina Kirchner. Para a empresa, o processo de abertura ocorre de maneira gradual. “Se a economia fosse aberta, estaríamos na quinta loja, pois é um mercado de muito potencial”, diz Anderson Melo, gerente de exportações da Democrata.

O fortalecimento da relação bilateral é crucial para ajudar a reerguer as duas economias. Com a recessão, o volume de comércio fechou em US$ 22 bilhões no ano passado, quase metade do pico de 2011, quando as trocas somaram US$ 40 bilhões. Para a Argentina, as exportações são um dos pilares do crescimento neste ano. “Uma melhora regional, em particular do Brasil, e um peso desvalorizado impulsionarão as exportações”, diz Ricard Torné, da consultoria espanhola FocusEconomics. “As reformas feitas no começo da gestão Macri começarão a ter efeito, melhorando o sentimento dos empresários e estimulando os investimentos.”

Desde que Macri assumiu a presidência, no final de 2015, saíram de cena a manipulação de dados e as tentativas de manter a economia rodando sobre medidas de curto prazo, características que marcaram o período Kirchner. O câmbio passou a flutuar livremente, subsídios foram retirados e a Argentina voltou a acessar os mercados internacionais. Ainda que vistas como necessárias, as reformas tiveram efeitos negativos de curto prazo. O fim dos subsídios elétricos elevou as tarifas em 300%. A retirada das ajudas estatais aumentou em 33% os preços dos alimentos na capital argentina e de 400% do gás.

ECOS DO PASSADO: pilhas de sapatos no rio grande do sul à espera de autorização para entrar na argentina, em 2011. frequentes na administração Cristina Kirchner, barreiras ainda dificultam exportações de empresas brasileiras ao país vizinho
ECOS DO PASSADO: pilhas de sapatos no Rio Grande do Sul à espera de autorização para entrar na argentina, em 2011. Frequentes na administração Cristina Kirchner, barreiras ainda dificultam exportações de empresas brasileiras ao país vizinho

Trata-se de movimento semelhante ao observado no Brasil em 2015, com a alta de preços administrados. A liberalização do câmbio provocou uma desvalorização de 32% do peso. Tudo isso levou o país a entrar em recessão e apresentar inflação elevada. A projeção do Fundo Monetário Internacional (FMI) é de uma queda de 1,5% do PIB em 2016. Já a inflação fechou o ano na casa dos 40%. No Brasil, as reformas visam reverter um quadro fiscal dramático num contexto em que a economia encolheu mais de 3% no ano.

Em sua defesa, Macri alega um “processo de normalização” após os diversos erros do casal Nestor e Cristina Kirchner, cujas subvenções para água, luz e gás provocaram um rombo nas contas públicas na ordem de 2,5% do PIB. Ainda assim, ele foi obrigado a tomar atitudes para amenizar o choque do ajuste, como compensar os mais pobres e aposentados com redução impostos. Para 2017, o cenário é positivo, mas ainda faltam avanços. O governo argentino projeta um crescimento de 3,5%, índice superior aos 2,7% previstos pelo FMI.

Embora mais branda, a inflação continuará preocupante – a expectativa é de cerca de 20% – com a continuação do “tarifaço” nas contas de água (300%), luz (148%) e pedágios (120%). Assim como no Brasil, a expectativa é de que a melhora fique mais clara na metade do ano. “O processo de recuperação terá mais força a partir do segundo trimestre, momento em que se espera uma retomada do consumo, devido à menor inflação e recomposição dos salários reais, junto com os investimentos em obras e melhores perspectivas de aporte do setor privado”, diz Dante Sica, diretor da consultoria ABECEB e ex-secretário de Indústria e Comércio e Mineração da Argentina.

LONGO PRAZO Apesar das dores atuais, as reformas de Macri são vistas como um sinal positivo de longo prazo no setor privado. “A situação continua difícil, porque assim como no Brasil ele recebeu uma herança maldita”, afirma Marco Stefanini, CEO do grupo Stefanini. “Mas a perspectiva é outra, não é só discurso.” A empresa opera há 20 anos na Argentina. Na comparação entre as duas economias, há quem enxergue um ambiente até mais positivo nos vizinhos. “Nada se compara com os ajustes para sobreviver a essa crise sem precedentes no mercado brasileiro de caminões e ônibus”, diz Edson Martins, da Agrale.

A fabricante gaúcha de veículos tem a Argentina como maior mercado externo. A empresa, que também fabrica nos vizinhos, torce para o aprofundamento na parceria. “É preciso criar uma política de Estado, tanto no Brasil quanto na Argentina, com a efetiva diminuição da burocracia para o comércio bilateral.” Fica o recado aos dois países de que juntos os dois podem fazer uma tabelinha no comércio e subir no ranking mundial de crescimento. Nada a ver com a rivalidade do futebol, em que ambos disputam o topo da lista da Fifa.

DIN1005-argentina5

Colaborou: Débora Bergarmasco