Com cerca de 20 anos de pesquisa sobre Previdência no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o economista Marcelo Caetano, hoje secretário da Previdência, é o principal mentor da reforma no sistema atual de aposentadorias. Ele costuma usar o exemplo dos Estados com dificuldade para pagar os aposentados como forma de mostrar o que pode acontecer com os benefícios caso o País não reveja a trajetória de crescimento dos gastos nos próximos anos. Em entrevista à DINHEIRO, ele detalha alguns pontos principais da reforma da Previdência, que começará a tramitar no Congresso nesta semana.

DINHEIRO – Boa parte dos estudos sobre aposentadoria hoje no Brasil levam o seu nome ou contam com a sua participação. Qual é a diferença entre a posição de pesquisador e de integrante do governo propondo políticas públicas para a previdência?
MARCELO CAETANO – É bastante diferente. Você aproveita toda essa bagagem que se fez ao longo de 20 anos de carreira para fundamentar opiniões. Mas uma coisa é você ser pesquisador e outra coisa é estar no governo propondo efetivamente políticas. É uma comparação mais ou menos como ser o comentarista e ser o técnico do time. Aqui você tem de definir uma posição do governo.

DINHEIRO – O tempero político o senhor deve estar sentindo na veia…
CAETANO – Na parte previdenciária, o núcleo político ouve muito o núcleo técnico. Não sai tomando a decisão com base naquilo que ouviu dizer. Claro que as decisões no final são políticas, mas sempre se procura tomar decisões com embasamento técnico. Isso é uma coisa que me deixa bastante satisfeito.

DINHEIRO – Gostaria de fazer aqui, se o senhor me permite, um exercício de usar o seu exemplo para falar das regras de aposentadoria. O senhor já fez os cálculos sobre o que muda? Conseguiria se aposentar aos 65 anos, por exemplo?
CAETANO – Tenho 46 anos hoje. No meu caso concreto não se aplica a regra de transição, que abrange quem tem 50 anos ou mais. Pelas regras atuais, eu posso me aposentar aos 57 anos, 58 anos, com integralidade – isso significa meu último salário, meu salário de final de Ipea. Eu também tenho acesso a paridade, ou seja, o reajuste da minha aposentadoria seria igual ao dos salários de um funcionário do Ipea. Com as mudanças, a idade passa a ser 65 anos e essa questão da paridade também não vale mais para mim. Eu passaria a ter o reajuste pela inflação e não igual ao um servidor da ativa. A fórmula do benefício também muda. Deixa de ser o último salário e passa a ser a média dos salários de contribuição, com a fórmula do 51% +1 ponto percentual para cada ano trabalhado. Como eu comecei a contribuir mais jovem, aos 21 anos, completaria 44 anos de contribuição aos 65 anos, então em vez de repor 100% do benefício, passaria a repor 95% sobre a média. Para chegar aos 100%, teria de aposentar aos 69 anos. Mas veja só: nessa questão de 100%, quando olha a realidade do INSS, muita gente não tem essa possibilidade de repor tudo. Muita gente que se aposenta com fator previdenciário, acaba tendo uma taxa de reposição fica na faixa de 70%.

DINHEIRO – Qual é a taxa média de reposição?
CAETANO – Se for pegar a aposentadoria por tempo de contribuição, com o fator previdenciário, varia muito da combinação idade com tempo de contribuição, mas fica na faixa de 70%. Mas com reforma ou sem reforma, as pessoas que ganham o salário mínimo continuam com reposição integral. Não tem aposentadoria menor que um salário mínimo.

DINHEIRO – Hoje é maioria o salário mínimo no INSS, não?
CAETANO – Cerca de 60% dos benefícios ficam iguais ao salário mínimo.

DINHEIRO – Em 2016, as contas da Previdência apresentaram uma novidade: o sistema urbano voltou a ter déficit depois de sete anos no azul…
CAETANO – Quando a gente pega o setor urbano em particular, há questões conjunturais e estruturais. Como a arrecadação da Previdência é muito baseada em folha de pagamentos, naturalmente que uma conjuntura econômica de maior ou menor geração de empregos acaba afetando a arrecadação e faz com que o resultado varie. Mas tem uma questão estrutural importante: o Brasil passa por um envelhecimento muito acentuado. Os movimentos cíclicos diminuem ou aumentam o déficit urbano, até fazem com que vire superávit, mas estruturalmente a situação é de déficit.

DINHEIRO – A crise antecipou o problema?
CAETANO – Eu julgo que o que aconteceu foi ao contrário: o momento de bonança postergou a realidade. E agora a realidade está se mostrando para gente. Claro que se a conjuntura melhora, o déficit diminui.

DINHEIRO – O sistema rural tem 30% dos beneficiários e representa 70% do déficit total. É natural que seja assim?
CAETANO – No rural, muitas vezes é possível obter o benefício sem um vínculo contributivo muito bem definido. O setor rural é naturalmente deficitário. E vai continuar assim mesmo depois da reforma. O que estamos propondo no projeto é que exista maior vinculo contributivo para a aposentadoria rural, mas não esperamos acabar com o déficit rural.

DINHEIRO – Uma das máximas mais citadas desde que o texto foi apresentado é que a expectativa de vida num Estado do Nordeste, por exemplo, é bem diferente de uma região rica e às vezes fica até abaixo da idade mínima. Como equacionar essa questão?
CAETANO – Quando considera as expectativas regionais, as comparações estão muito associadas com a expectativa de vida ao nascer. Por mais que tenha diminuído, ainda existe mortalidade infantil e os índices nessas regiões que você citou são naturalmente maiores do que nas regiões do Sul e Sudeste. Quando estamos falando de aposentadoria, não tenho que olhar a expectativa de vida ao nascer. E sim uma expectativa de vida depois que já passou para um determinado período (expectativa de sobrevida). Quando se considera a expectativa de vida em idades mais altas, as diferenças começam a diminuir bastante. É um primeiro ponto. Outro ponto é que mesmo olhando na comparação internacional, países que tenham dimensões continentais, como EUA, Canadá, Índia, China, não adotam regras de aposentadoria diferenciada por região. Outro aspecto importante para se colocar é que se a gente for começar a considerar a diferença de expectativa de vida por região, tem um fato bastante curioso que é a diferença da expectativa de vida por bairro dentro de uma mesma cidade, que às vezes é maior do que em regiões diferentes. Em Alto de Pinheiros, em São Paulo, a expectativa de vida é de 79,77 anos. Já no bairro de Cidade Tiradentes, em São Paulo, é de 53,85 anos. Se a gente considerar isso, vai ver que seria preciso adotar ações previdenciárias pelo CEP da pessoa. Existe muita migração interna – mais ou menos 60% das pessoas com 50 anos ou mais não moram no mesmo município que nasceram. Eu nasci no Rio de Janeiro e moro no Distrito Federal, que expectativa de vida eu consideraria? Mesmo nos municípios com menor expectativa, a proporção de aposentados com mais de 65 anos é maior do que em outras cidades. Porque quem se aposenta mais jovem são aquelas que tiveram uma inserção mais regular no mercado de trabalho. Esses outros grupos com uma inserção irregular já se aposentam naturalmente por idade.

DINHEIRO – A idade mínima de 65 anos é um dos pontos mais sensíveis do texto da reforma. Não seria interessante um avanço gradual, como sugerem alguns especialistas?
CAETANO – O governo propôs o projeto e obviamente o interesse do governo é que seja aprovado do jeito que foi proposto. Agora, naturalmente que a gente vive um ambiente democrático e em função disso, a própria velocidade da tramitação da proposta e o que vai ser aprovado é o Congresso que vai definir. Óbvio que a gente vai tentar convencer o Parlamento de que a nossa proposta é mais interessante. Um ponto importante a se colocar é que a regra que estamos propondo tem uma transição de 20 anos. Só daqui a 20 anos é que todos vão passar a se aposentar de acordo com as regras que estamos propondo.

DINHEIRO – Na negociação com o Congresso, há algum ponto mínimo, em que se mexer abaixo desse limite vai desfigurar a proposta inicial da reforma e afetar o benefício na trajetória de gastos?
CAETANO – Há vários itens que compõem o desenho do texto. Quando a gente propõe a reforma, está analisando um conjunto. Tem de ver exatamente quais são as alternativas que aparecem para saber se é possível manter o todo consistente. De repente, pode alterar uma peça da engrenagem que torna o todo inconsistente. Não tem como falar em item A ou B…

DINHEIRO – Num estudo de 2016 sobre o fim do fator previdenciário, o senhor usa como idade mínima 65 anos para homens e 60 para mulheres. Mas a PEC iguala os dois? Por que faz sentido igualar?
CAETANO – É uma tendência universal. Se você for ver mundo afora, os países ou adotam idades iguais ou têm uma tendência de igualação. A gente tem de analisar a reforma no seu conjunto. Qual é o grande norte dessa reforma: é dar um tratamento igualitário para todos, igualando político com não político, servidor público com não servidor, legislativo, judiciário…

DINHEIRO – Os militares ficaram de fora. O que eles têm de diferente?
CAETANO – Os militares serão tratados em outro momento. São discussões a parte, não estão dentro da reforma. O item deles da previdência militar não é constitucional, é para outro momento.

DINHEIRO – Diante desses desafios previdenciários, ainda é possível falar em bônus demográfico?
CAETANO – A razão de dependência que de fato é relevante para a Previdência é a de idosos. Está crescendo e vai crescer muito fortemente daqui em diante porque a gente hoje tem uma razão de dependência de idosos na faixa de 11 a 12 idosos para cada 100 pessoas em idade ativa e a tendência disso é crescer até chegar, segundo o IBGE, a 44 para 100 em 2060. Nisso não tem bônus.

DINHEIRO – A despesa com benefícios do INSS subiu para 8% do PIB em 2016. Sem a reforma, a quanto chegaria esse nível?
CAETANO – Ficaria algo em torno de 17% a 18% do PIB.

DINHEIRO – O que significa isso para o dia a dia do brasileiro?
CAETANO – Precisaríamos de um aumento de carga tributária na faixa de dez pontos percentuais do PIB para manter a Previdência como está. Se você dedica hoje um terço do ano ao pagamento de impostos, ou quatro meses mais ou menos, isso se aproximaria da metade do ano de trabalho em pagamento de impostos.

DINHEIRO – Agora que o limite de gastos já foi aprovado, o que acontece com as contas públicas se a reforma não for aprovada?
CAETANO – Se for considerar os próximos dois, três anos, de fato não vai afetar muito a PEC dos gastos. Mas para a emenda da PEC dos gastos vigorar de fato, a reforma da Previdência é fundamental. Elas têm relação entre si. Mas mesmo que não tivesse passado uma PEC dos gastos, a reforma da previdência seria fundamental. A PEC dos gastos reforça a reforma da previdência, mas a reforma é necessária por si só.

DINHEIRO – Não é raro encontrar no Brasil pessoas que se aposentam e continuam trabalhando e que encaram o benefício como complemento de renda. Deveria ser assim?
CAETANO – A reforma não altera esse aspecto. É possível continuar trabalhando e recebendo aposentadoria. Sempre quando se propõe uma reforma, vão aparecer pessoas argumentando que deveria ser uma regra menos rígida e outras, como essa de repente, que proponham que deveria ser mais rígida.

DINHEIRO – O técnico do IPEA proporia uma reforma mais rígida?
CAETANO – Quem propôs foi o Marcelo também, é a mesma pessoa, junto com uma equipe. A proposta que está apresentada é a do governo, que junta questões de natureza técnica com questões de natureza política.

DINHEIRO – O problema da previdência dos Estados já está aparecendo. Como resolver esse problema hoje?
CAETANO – Muitos me perguntam quando efetivamente vai aparecer o problema da previdência. Quando a gente olha a situação de alguns Estados e vê dificuldade de pagamentos ou parcelamento de aposentadorias, isso mostra que o momento chegou e que é necessário fazer uma reforma. O que acontece: temos de respeitar direito adquirido, não se pode voltar atrás e se afirmar que você estava aposentado e, de repente, deixa de aposentar ou que recebia X e irá receber menos. Não tem como fazer isso. Então, a reforma da previdência tem de passar a afetar os fluxos dali para frente como se alteram as coisas no sentido de dar sustentabilidade ao regime, então tem de fazer na reforma da previdência o que é possível fazer dentro dos limites jurídicos e constitucionais do País.

DINHEIRO – A solução passa por um socorro nesses regimes que estão com problema?
CAETANO – Isso foge ao meu escopo.

DINHEIRO – Há risco de que os municípios caminhem para a mesma situação dos Estados?
CAETANO – Varia muito de situação para situação, mas no conjunto a situação dos municípios é menos acentuada do que a questão nos Estados.