A voz é calma e serena. Por vezes, Jael, 30 anos, recorre ao francês para substituir uma expressão ainda não incorporada ao seu vocabulário em português. Mas as pausas pontuais não são fruto apenas da barreira do idioma. Ela escolhe as palavras, cuidadosamente, pois não é fácil relembrar o duro roteiro que a fez deixar a República Democrática do Congo, sua terra natal, em 2013. Sob ameaças, a secretária de formação se viu forçada a partir quando o marido, militar, desapareceu, após ser acusado de trair o governo local. Os três filhos, ainda pequenos, permaneceram com a avó. “Fui violentada e engravidei. Tinha medo e vergonha de ficar”, diz Jael, que deu à luz a um menino, durante a primeira etapa da longa jornada, concluída no Quênia. Lá, desembolsou US$ 500 para embarcar, clandestinamente, em um navio de carga.

O destino prometido era o Canadá. Porém, três meses depois, ela chegou ao Brasil. Sem o seu bebê, que não resistiu às condições desumanas da viagem. E sem ao menos saber o nome do lugar no qual, enganada, acabara de aportar. Era a capital pernambucana, Recife. O triste relato guarda muitos pontos em comum com incontáveis casos por trás da marcha crescente de refugiados pelo mundo. Em boa parte dos destinos escolhidos, a intolerância é o mote de novos dramas e traumas.

Na contramão dessa resistência, o Brasil desponta como uma alternativa para que, pouco a pouco, essas histórias possam ser reescritas, com uma ajuda de peso: empresas de todos os portes e segmentos estão abrindo oportunidades para a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho. Jael é um dos exemplos dessa corrente. Há quatro meses, ela é uma das oficiais de limpeza da Sodexo. “Estou refazendo a minha vida”, diz a primeira refugiada a trabalhar diretamente na sede da empresa, em São Paulo. “Quero mudar a nossa cultura e achei importante trazê-la para perto do comando da companhia”, diz Djalma Scartezini, líder de diversidade e inclusão da Sodexo que, desde 2016, já contratou 62 refugiados, distribuídos em suas unidades e clientes.

Recrutamento: Nascida e criada no Congo, Jeanine (à esq.) atua desde janeiro como assistente de seleção na consultoria Projeto RH, fundada por Eliane Figueiredo (Crédito:Gabriel Reis)

Segundo a Agência da ONU para Refugiados , em 2016, 65,6 milhões de pessoas foram forçadas a deixar seus países, por diferentes tipos de conflitos. Sob esse contexto, muitos preferem omitir o sobrenome e até mesmo o nome em seus relatos, com medo de possíveis represálias as seus parentes, que ficaram em seus locais de origem. No Brasil, o balanço do Comitê Nacional para os Refugiados e do Ministério da Justiça, mostrava, no fim do ano passado, que o País abriga mais de 9,5 mil pessoas, de 82 nacionalidades (veja quadro ao final da reportagem). Outros números chamam a atenção. “Ao menos, 65% deles têm ensino superior”, diz João Marques, responsável pelo Programa de Apoio para a Recolocação de Refugiados (PARR), que mantém uma plataforma com 2 mil currículos e 207 empresas cadastradas.

Mais de 200 pessoas já foram contratadas por meio da iniciativa. “Não é assistencialismo. As empresas estão percebendo que são pessoas capacitadas e que podem trazer uma cultura diferente para os seus negócios.” Esse foi o caso da Gesplan, empresa de assessoria contábil. “Somos pequenos e, dificilmente, teríamos acesso a um funcionário com esse perfil”, diz Mauro Andrade, sócio-diretor da Gesplan. Hoje, a empresa emprega duas mulheres encaminhadas pelo PARR. Kadiatou, 41 anos, chegou ao Brasil em 2013, quando a economia ainda vivia ventos mais favoráveis. Formada em hotelaria, ela buscava uma oportunidade para pagar os estudos do filho adolescente, que ficou no Guiné-Conacry, país da África Ocidental. “Lá eu ganhava pouco e não conseguia pagar as contas”, afirma.

A chance chegou com uma vaga de copeira, no início de 2016, depois de dois anos, que incluíram o abrigo em um campo de refugiados, no centro de São Paulo, e de “bicos” em um hotel. Já a iraniana S.,42 anos, conseguiu a vaga de assistente administrativa na Gesplan há cerca de um ano, após algumas experiências como garçonete em restaurantes que, segundo ela, adotavam um regime “próximo da escravidão”. Formada em Letras e fluente em inglês, espanhol, turco, persa e, agora, em português, ela decidiu deixar o Irã, em 2013, por fatores como a obrigação de seguir à risca os preceitos da religião mulçumana xiita, a falta de direitos das mulheres e o contexto político do país.

Na conta: Formada em hotelaria, no Guiné-Conacry, Kadiatou é uma das duas refugiadas que integram a equipe da assessoria contábil Gesplan (Crédito:Divulgação)

Um dos fatores que pesaram para essa escolha foram as reações violentas que sucederam a Revolução Verde, como ficaram conhecidos os protestos que contestaram o resultado da eleição do presidente Mahmoud Ahmadjnejad, em 2009. “Eu fui para as ruas e perdi muitos amigos”, diz. “Chegou um dia em que eu precisava ter uma vida mais tranquila. Pesquisei e o Brasil oferecia o que eu queria”, afirma. Ela destaca um desafio para os refugiados no País: a lentidão e o alto custo para validar os diplomas do exterior, o que torna mais difícil a recolocação em sua área de atuação. Outras questões compõem esse cenário.

Muitos refugiados não conseguem frequentar os cursos gratuitos de português oferecidos por entidades. Ou mesmo comparecer a uma entrevista de emprego. “Não é raro eles não terem dinheiro para o transporte”, diz Eliane Figueiredo, fundadora da consultoria Projeto RH. Desde janeiro, a empresa tem Jeanine, 31 anos, vinda do Congo, como assistente de seleção. Em 2013, envolvida com direitos humanos, ela ousou falar em um programa de TV sobre o assassinato do ativista Floribert Chebeya. “Desde aquele dia, nunca mais voltei para casa”, afirma. Jeanine começou a sofrer ameaças, mais tarde, concretizadas. A chegada ao Brasil também foi tensa. Ela escapou do Congo em uma viagem de uma comunidade católica.

Chegando ao Aeroporto Internacional de Guarulhos, no entanto, foi abandonada à própria sorte. Com US$ 100 no bolso e sem falar uma palavra em português, teve a mala roubada. Os primeiros meses foram passados em uma casa que abrigava estrangeiros e ex-presidiários, na zona leste de São Paulo. Desde então, os laços com o País se estreitaram. Ela já tem um filho brasileiro, de dois anos. E agora está grávida de uma menina. A violência no Congo também mudou a vida de dois jovens do país. Filho de um jornalista que questionava o governo, e que desapareceu em circunstâncias até hoje não explicadas, Francesco, 20 anos, não tinha o Brasil como primeira opção. Em 2014, ao lado da mãe e dos quatro irmãos, tentou se estabelecer na França.

Capacitação: Como auxílio para a adaptação dos refugiados, entidades e empresas como Renner e BB Mapfre oferecem cursos gratuitos de português (Crédito:Fernando Donasci / Agência O Globo)

Como a entrada no país foi limitada a cinco familiares, ele, o filho mais velho, foi o escolhido para seguir viagem. Há cinco meses, conseguiu uma vaga como jovem aprendiz no grupo segurador Banco do Brasil e Mapfre. “Tenho a chance de esquecer meu passado pesado e seguir em frente. O Brasil é um mundo novo para mim”, diz Francesco, que planeja ingressar em uma faculdade. “O que impressiona é ver a resilência e a alegria com que eles contam essas histórias”, afirma Cynthia Betti, diretora de recursos humanos do Banco do Brasil e Mapfre. A empresa prepara a segunda turma de capacitação para jovens refugiados. Foram vendidas cotas para companhias que terão a preferência na contratação dos 30 participantes.

Walmart e Magazine Luiza são algumas das empresas que adquiriram esse direito. A varejista Renner também está investindo na capacitação de 120 mulheres refugiadas. “Nosso foco é que elas consigam gerar renda”, diz Clarice Costa, diretora de RH da empresa. A iniciativa está dividida em duas frentes: a formação de costureiras, para trabalhar em casa ou em fornecedores da Renner; e de profissionais de atendimento, que podem ser incorporadas às lojas da rede. Foi o que aconteceu com Lucia, 19 anos, também do Congo. Ela acaba de ser contratada para uma unidade da bandeira Camicado. Essa é sua primeira experiência profissional. E, também, o primeiro emprego conquistado pela sua família, de dez pessoas, instalada em Mauá, no ABC paulista.

Com uma bolsa de estudos de 50%, ela está no quarto semestre da faculdade de Recursos Humanos. E já planeja uma pós-graduação. “Tudo de ruim pelo que eu passei me deu coragem para enfrentar qualquer coisa. Tenho muito ainda a fazer.” Os novos voos não estão restritos à nova geração. “Penso em voltar um dia. Para empreender e ajudar as mulheres do meu país”, diz Jeanine. A capacidade de usar as duras experiências vividas como uma força para recomeçar é, com certeza, um traço comum desses novos brasileiros. “Quero estudar, ter outra formação e crescer”, afirma Jael, que vive a expectativa da regularização dos documentos de liberação da chegada dos três filhos ao País. “Hoje, tenho quase tudo o que preciso. Quando eles estiverem comigo, tudo estará completo.”