Não é preciso ler nas entrelinhas. Os crescentes indícios de que as Livraria Saraiva e Cultura estão ensaiando uma fusão deixam claro a preocupação de ambas em garantir a sobrevivência do negócio, em tempos de popularização dos livros digitais e do avanço da americana Amazon sobre o mercado brasileiro. A maior varejista digital do mundo dobrou a sua participação em vendas de livros pela internet no Brasil, entre 2014 e 2015, de 5% para 10%. É consenso entre especialistas que a consolidação do setor de varejo de livros já deveria ter sido buscada, pelo menos, três ou quatro anos atrás.

Naquela época, as duas empresas estavam crescendo, enquanto se preparavam para a chegada de uma competição cada vez maior com o mundo digital e os seus e-books. Nos EUA, no mesmo período, empresas com modelos de negócios similares, como a Borders e a Barnes & Noble, estavam definhando, ameaçadas pelo domínio digital da Amazon. O cenário brasileiro mudou nos últimos anos. E foi para pior. Além de precisar se preocupar com as compras pela internet, o setor livreiro foi um dos mais afetados do varejo pela crise econômica.

Força nacional: com capital aberto e 113 lojas, a Saraiva, de Jorge Saraiva Neto, tem maior presença no território
Força nacional: com capital aberto e 113 lojas, a Saraiva, de Jorge Saraiva Neto, tem maior presença no território (Crédito:Sergio Castro)

Segundo dados do IBGE, o segmento sofreu uma queda vertiginosa de 16% nas suas vendas, em 2016. A conjuntura negativa atingiu as empresas. Na Saraiva – de capital aberto e controlada pela família Saraiva –, a perda acumulada entre janeiro e setembro foi de 2%, em comparação com o mesmo período do ano passado. Uma queda de 3% na receita já havia acontecido em 2015, quando fechou o ano com faturamento de R$ 1,77 bilhão. Já a Livraria Cultura, companhia de capital fechado controlada pela família Herz, faturou R$ 380 milhões, em 2016. Em dois anos, a receita encolheu R$ 80 milhões.

Juntas, elas têm mais chances de enfrentar não só o momento difícil, mas também encarar a ameaça proposta pela Amazon e pelos preços menores das lojas online. Por meio de comunicado, a Saraiva informou que “não comenta boatos, especulações ou rumores de mercado”. A Cultura não respondeu a solicitação de entrevista, mas, também por meio de nota, informou que “não fez ou recebeu proposta da Saraiva”. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, as negociações começaram há três meses e não envolvem nenhum banco. O vazamento das negociações apenas em fevereiro indica que só recentemente a aproximação entre as duas se intensificou.

As tratativas acontecem a portas fechadas e estão restritas às famílias. Mas o que levou as empresas a pensarem em casamento? A fusão, se acontecer, precisará ir além de uma integração de back offices. Segundo um especialista do setor, a lição de casa de melhoria de eficiência já foi realizada nas duas redes, e há pouco a ganhar na unificação de sistemas de tecnologia e departamentos administrativos. Os objetivos precisam ser mais ambiciosos. Há algumas oportunidades.

“A sinergia entre elas existe e é clara. As duas empresas atendem a consumidores muito similares, mas detêm expertises diferentes”, afirma Ana Paula Tozzi, CEO da AGR Consultores, especializada em varejo. A Saraiva possui 113 lojas, sendo focada em espaços de médio porte, além de uma boa capilaridade no mercado brasileiro. Já a Cultura cresceu com o conceito de megastores, e possui 17 unidades. “Ela tem maior variedade de livros, em especial, dos de maior valor, como os de arte”, diz Tozzi. E também avançou mais na migração para a internet, contando com 28% de suas vendas por canais online, contra 12% da Saraiva.

Já para os investidores, a expectativa é de que a Cultura ajude a melhorar a administração do negócio. Segundo Adeodato Volpi Netto, estrategista-chefe da Eleven Financial, a companhia da família Herz, mesmo com o capital fechado, possui uma gestão mais profissional do que a da Saraiva. Apesar de as duas companhias apresentarem um perfil similar, com uma liderança familiar muito intensa e um herdeiro jovem como CEO – Jorge Saraiva Neto, conhecido como Jorginho, e Sergio Herz, na Cultura –, as práticas da Saraiva preocupam mais o mercado.

Nos últimos anos, a companhia se envolveu em uma série de polêmicas. “Tenho sérias restrições à gestão da empresa, que cuida muito dos interesses dos controladores e pouco dos acionistas minoritários”, diz Volpi. “A venda do braço editorial, por exemplo, resolveu o problema de endividamento da família sem aliviar o caixa da empresa.” Em 2015, a Saraiva negociou a sua divisão editorial, a mais rentável, para a Somos Educação, por R$ 725 milhões. Depois disso, duas tentativas de profissionalização, com as passagens-relâmpago de Michel Levy, ex-CEO da Microsoft, e Enéas Pestana, ex-Pão de Açúcar, esbarraram no fato de que Jorginho e a sua mãe, Olga Saraiva, não aceitaram as suas sugestões.

A família, inclusive, barrou Pestana como CEO, depois de ele ter prestado consultoria para a empresa por quatro meses. No ano passado, uma confusão envolveu os acionistas minoritários da gestora de recursos GWI Asset, do coreano Mu Hak You, que entrou em colisão com os controladores depois de assumir uma posição no conselho de administração e confrontar as suas decisões. A GWI alegava que Jorginho não seria capacitado para a presidência e queria fora de lá. A queda de braço só foi resolvida com Hak You deixando o negócio. A negociação da fusão poderia ser o sinal de que, dada a conjuntura, a Saraiva esteja, enfim, pronta a aceitar uma profissionalização.

Afinal, ninguém no mercado consegue imaginar um cenário em que as famílias Saraiva e a Herz possam compartilhar a gestão, ou mesmo que abdiquem das decisões em favor dos novos sócios. Essa pode ser a senha também para uma reformulação completa do modelo de negócios, que poderia ser necessária para ambas. “Nenhuma das duas empresas está repensando o ponto de vendas”, diz a consultora Tozzi. Nos EUA, a Amazon tem investido em lojas físicas em que os clientes passem horas navegando na internet e coletem pedidos de compras feitos online. Se a fusão entre Saraiva e Cultura vai sair é uma incógnita. Mas uma coisa é fácil de prever: o espectro da Amazon vai continuar assombrando as duas empresas. Juntas ou separadas.

Correção: a primeira versão dessa reportagem estava com o faturamento de 2016 desatualizado. A informação já está corrigada