Em posse de 14 milhões de páginas de documentos, membros da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do BNDES na Câmara dos Deputados fizeram questão de registrar, no relatório final, de fevereiro de 2016, um alerta sobre a interrupção precoce dos trabalhos. Os relatos permitem inferir que a comissão se encerrou quando os fatos começavam a se desdobrar, deixando mais dúvidas do que respostas no ar. Nas próximas semanas, os deputados terão uma rara oportunidade de retomar a apuração.

Foi lido no Senado, na quinta-feira 25, o requerimento para a criação de uma CPI mista que, mais uma vez, se debruçará sobre suspeitas em torno do banco – falta apenas a checagem das assinaturas. O pedido segue a divulgação da delação premiada da JBS, que apontou o pagamento de propinas para liberação de recursos do grupo, e aguçou a polêmica acerca da instituição. Desta vez, o foco é mais específico, sobre as linhas para a internacionalização das companhias, instrumento em que a JBS desponta como líder.

Raio-x nos empréstimos: Eike Batista, dono do grupo X, montado com forte apoio do BNDES, teve de explicar as operações na CPI do banco estatal, na Câmara dos Deputados, em 2015
Raio-x nos empréstimos: Eike Batista, dono do grupo X, montado com forte apoio do BNDES, teve de explicar as operações na CPI do banco estatal, na Câmara dos Deputados, em 2015 (Crédito:José Cruz/Agência Brasil)

Escolhida como candidata a campeã nacional, a empresa contou com o apoio do banco para avançar no exterior, a partir da compra de concorrentes pelo mundo. A injeção de recursos se deu pela aquisição de participações no capital via BNDESPar, o braço de investimentos estatal. Foram R$ 8,1 bilhões no total (leia ao lado), incluindo operações destinadas ao Bertin, incorporado pelo JBS em 2009. As suspeitas vão além do debate sobre a eficácia do uso de recursos nesse tipo de negócio.

Auditorias do Tribunal de Contas da União (TCU) sugerem irregularidades como maior celeridade para aprovação das operações da JBS, falhas nas análises sobre os potenciais alvos de aquisição e sobrepreço na compra de ações. O processo inicial da Corte, de 2015, estima que os prejuízos com as participações possam alcançar R$ 711 milhões. A partir dele, quatro novas auditorias separadas foram abertas, para apurar as compras do Swift, da National Beef, da Pilgrim’s e do Bertin.

Na primeira já concluída, da Swift, ficou constatado, por exemplo, que a operação foi aprovada em 22 dias, ante 210 dias, na média, de casos semelhantes. Em sua delação, o empresário Joesley Batista, dono da JBS, apontou o então ministro da Fazenda, Guido Mantega, como um facilitador das operações no BNDES, com uma contrapartida de 4% sobre os contratos.
Os relatos reforçam apontamentos da Odebrecht sobre a influências de membros do Executivo no banco nas gestões petistas.

As suspeitas sobre os desembolsos para o JBS foram alvo da operação Bullish, da Polícia Federal, no dia 12 de maio, quando foram cumpridos 37 mandados de prisão. Na sede do banco, no Rio de Janeiro, os funcionários organizaram um ato para questionar os excessos das autoridades. Após o episódio, o BNDES abriu uma comissão interna de investigação para o processo de recursos levantados pelo frigorífico, num total de cerca de R$ 12 bilhões. Na mesma linha, o TCU também indicou que vai acelerar os processos sobre o grupo.

Embora ocupe o centro dos holofotes, a JBS não é única envolvida em polêmicas com o BNDES. Na primeira CPI, foram alvos de apuração a usina de Belo Monte, as Usinas São Fernando, de José Carlos Bumlai, o grupo EBX, de Eike Batista e a LBR (Lácteos Brasil). Entre autoridades ligadas à Lava Jato, é comum ouvir que as apurações no banco estatal podem revelar um escândalo maior que o petrolão. Só o grupo Odebrecht, por exemplo, soma mais de R$ 8 bilhões em créditos para obras no exterior, incluindo o controverso porto de Mariel, em Cuba, e projetos na Venezuela.

Protesto de servidores: funcionários do banco estatal se uniram na frente da sede, no centro do Rio de Janeiro, na sexta-feira 12, para protestar contra a condução coercitiva de colegas na operação Bullish, da Polícia Federal, que apura suspeitas sobre os empréstimos destinados ao frigorífico JBS
Protesto de servidores: funcionários do banco estatal se uniram na frente da sede, no centro do Rio de Janeiro, na sexta-feira 12, para protestar contra a condução coercitiva de colegas na operação Bullish, da Polícia Federal, que apura suspeitas sobre os empréstimos destinados ao frigorífico JBS (Crédito:Wilton Junior/Estadão)

Sem contar os R$ 2 bilhões investidos pela BNDESpar no capital do grupo baiano. Em comum, JBS e Odebrecht, dois dos maiores beneficiários, são também os grandes financiadores de campanha políticas. Num estudo com 289 empresas, o economista Sérgio Lazzarinni, professor do Insper, já havia constatado uma forte correlação entre os doadores de campanha e o BNDES, sugerindo que as empresas que cultivavam boas relações com políticos tinham maior acesso ao banco – cada candidato eleito equivaleria a US$ 28 milhões em recursos.

A luz amarela de estudos como o de Lazzarini e de outros economistas não foi suficientes para evitar os equívocos. “A gente sabia que o filme era de terror e agora está vendo as cenas de carnificina”, afirma o professor. A lista de empréstimos controversos inclui empresas que enfrentaram dificuldades apesar do apoio, como a Oi, que soma R$ 9,8 bilhões em financiamentos desde 2002. Lazzarini questiona o elevado volume destinado a empresas grandes, com acesso a outras fontes de mercado. Além de JBS e Odebrecht, Petrobras e Vale somam juntas mais de R$ 50 bilhões nesse período.

Nova direção: a presidente Maria Silvia Bastos comanda uma reorientação na política de crédito do BNDES, com foco maior nas pequenas e médias empresas e menor peso nas campeãs nacionais
Nova direção: a presidente Maria Silvia Bastos comanda uma reorientação na política de crédito do BNDES, com foco maior nas pequenas e médias empresas e menor peso nas campeãs nacionais (Crédito:REUTERS/Ueslei Marcelino)

Isso fica claro também nos desembolsos para a compra de participações, lideradas pela Petrobras (R$ 24,7 bilhões) e com fatias relevantes de outros frigoríficos, como o Marfrig (R$ 3,6 bilhões). Um levantamento da consultoria Economatica mostrou que a BNDESPar detém uma participação de mais de 5% em 28 empresas de capital aberto, o equivalente a quase R$ 50 bilhões. Só no JBS, a fatia de 21,3% do braço estatal de investimento equivalia a R$ 3,8 bilhões até o dia 23, R$ 2,8 bilhões a menos do que no final de 2016. Para Lazzarini, o BNDES deveria se concentrar em suprir o que o mercado privado de crédito não proporciona, as chamadas falhas de mercado, emprestando de forma muito mais criteriosa.

Ao assumir a presidência, há pouco mais de um ano, a economista Maria Silvia Bastos deu início a uma mudança de orientação, limitando o crédito e priorizando projetos como os de saneamento e a empresas de menor porte. “O BNDES estava completamente fora da sua missão ao fazer aportes tão volumosos a determinados grandes grupos, que tiveram ganhos privados ao custo dos contribuintes”, diz Marcio Garcia, professor da PUC-RJ. “A má alocação, mesmo que sem nenhuma corrupção, já seria péssima.”

Um dos pontos frágeis apontados nas investigações é a falta de clareza na política que rege o banco, o que dá margem para decisões diversas sobre a destinação de recursos. Em declarações na CPI, Mantega e Luciano Coutinho, que presidiu o BNDES de 2007 a 2016, defenderam a atuação do banco frente à crise internacional e sua importância para o investimento. Eles descartaram favorecimentos ao reforçar as decisões colegiadas. “Como ministro, não tive nenhuma interferência na decisão de empréstimos do BNDES”, disse Mantega à época. Procurados, os advogados de Mantega e Coutinho não retornaram os contatos da DINHEIRO. O BNDES não se posicionou até o fechamento desta edição.

Em nota divulgada após a Bullish, a defesa de Coutinho alegou que os empréstimos à JBS foram feitos dentro da regularidade e que ele se esclarecerá na Justiça. Para Marcos Rotta, que presidiu a CPI do BNDES, apesar do rigor técnico e das decisões colegiadas, a apuração indicou brechas que deixam espaço para suspeitas. “O tráfico de influência atingia o primeiro escalão do banco, não os técnicos.” As investigações estão apenas começando. Buscam revelar os segredos que ainda pairam sobre uma pilha de mais de R$ 700 bilhões emprestados nos últimos 15 anos.

DIN1020-bndes5