Não deixa de ser irônico que as 264 palavras usadas para que o Reino Unido anunciasse o processo de divórcio da União Europeia (UE) tenham sido uma iniciativa britânica, que muitos já consideravam uma fonte de problemas.

O Artigo 50, invocado pela primeira-ministra britânica Theresa May, nasceu em uma grande convenção, celebrada entre 2002 e 2003, para redigir uma Constituição para a UE quando o bloco preparava sua ampliação aos países do leste europeu.

Ao falar sobre aquela convenção, os delegados recordam a hostilidade provocada pela ideia de criar uma “cláusula de saída”, algo que não tinha precedente na lei europeia.

“Para muitas pessoas, a noção de que um dia alguém pensaria em sair era um insulto”, lembra a deputada britânica Gisela Stuart, que integrava a presidência colegiada da convenção.

A deputada trabalhista lutou pela inclusão da cláusula e recorda que não tinha certeza se o texto sobreviveria às etapas seguintes.

Mas a convenção constitucional acabou, entre taças de champanhe e ao som de “Ode à Alegria” de Beethoven, e a cláusula, intacta, permaneceu no texto.

Stuart não compartilhava o entusiasmo.

Na campanha do referendo, ela assumiu um papel de protagonista a favor da saída da UE. O êxito do Brexit na votação faria do Reino Unido o primeiro país a aproveitar o Artigo 50.

Seu desgosto pela UE nasceu da percepção do caráter elitista daquela convenção e aumentou com eventos posteriores.

A ampliação aos países do leste da Europa aconteceu em 2004, mas a Constituição não prosperou porque foi rejeitada pelos eleitores franceses e holandeses em referendo.

– Uma cláusula de castigo –

Apesar dos reveses eleitorais, os líderes europeus retomaram as negociações e a Constituição resultou em um novo Tratado Europeu, assinado em Lisboa.

O que inicialmente era o “Artigo 60” se tornou o Artigo 50 do Tratado de Lisboa, sem que ninguém acreditasse que um dia seria utilizado.

Originalmente, a ideia era criar um mecanismo para afastar os Estados membros que demorassem a ratificar a Constituição.

“Todo mundo acreditava que seriam os britânicos que teriam problemas para ratificar a Constituição, não os franceses nem os holandeses. Assim, a princípio, era uma cláusula de expulsão”, disse Stuart à AFP em uma entrevista por telefone.

“Mas nem quando foi criada, nem em seu estágio final, quando se transformou no Artigo 50 do Tratado de Lisboa, os idealizadores pensaram que seria utilizada algum dia”, completou.

O prazo de dois anos para concretizar a saída sobreviveu no tratado, mas aqueles que imaginaram e redigiram o artigo não especificaram se o processo poderia ser interrompido uma vez iniciado.

O diplomata britânico John Kerr, que como secretário-geral da convenção foi o principal nome do Artigo 50, acredita que o processo é reversível se um Estado membro muda de opinião.

– Passagem de ida –

Em uma entrevista concedida à BBC em novembro, Kerr, atualmente membro da Câmara dos Lordes, admitiu que quando redigiu o artigo tinha em mente circunstâncias muito diferentes das atuais na Grã-Bretanha.

“Pensava que as circunstâncias em que seria usado, se um dia realmente fosse utilizado, seria em caso de golpe de Estado em um país membro e para suspender sua filiação à UE”, disse.

“Pensava que neste momento, o ditador em questão ficaria tão irritado que diria ‘tudo bem, vamos sair’, e seria bom ter um marco de abandono da UE”.

Outros delegados, no entanto, apontaram que a cláusula seria usada pelos eurocéticos.

“Naquele momento, os críticos da UE a apresentavam com uma caricatura, como uma passagem de dia para um destino desconhecido em um vagão fechado”, afirmou à AFP o representante holandês Gijs de Vries.

Alguns defensores da UE acreditaram que poderiam rebater a caricatura com a inclusão da cláusula.

De Vries destacou que “era improvável que a introdução de uma cláusula de saída fosse considerada satisfatória pelos populistas; pelo contrario, eu temi que desse asas para eles”.

​”Temo que o debate que vimos no referendo britânico me deu razão”, conclui.