Faz um calor quase insuportável na pequena cidade de Gavião Peixoto, no interior de São Paulo. A região é conhecida por suas temperaturas elevadas, acima de 35ºC, boa qualidade de vida e extensos canaviais, cultivo que domina todo o Oeste paulista. A paisagem rural e o clima simples, quase singelo, contrastam com os galpões que se erguem em meio às plantações, organizados junto a uma pista de pouso com mais de quatro quilômetros de extensão e 45 metros de largura – equivalente às medidas do Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, o maior do País.

O complexo industrial, onde está instalado um centro de tecnologia militar, nem parece incomodar os cerca de cinco mil habitantes do município. A maioria dos engenheiros que chegam e se vão diariamente, em dezenas de ônibus, prefere morar em cidades maiores no entorno, como São Carlos e Araraquara. Mas todo gavionense sabe que ali está instalada a Embraer, a líder global no segmento de jatos regionais e a terceira maior fabricante de aviões do mundo (atrás da americana Boeing e da europeia Airbus), com US$ 6,2 bilhões de receita, em 2016, e mais de oito mil aviões entregues.

O que, talvez, poucos tenham noção é a dimensão do que está sendo desenvolvido no local. “Estamos muito bem posicionados no mercado”, afirma Paulo Cesar de Souza e Silva, presidente da Embraer, que recebeu a DINHEIRO na sede administrativa da companhia, localizada na região da avenida Faria Lima, em São Paulo, para sua primeira entrevista exclusiva desde que assumiu o cargo, em julho passado. A cidade abriga os centros de desenvolvimentos e as linhas de montagem de dois aviões militares de última geração: o caça Gripen e o cargueiro KC-390. As aeronaves são o expoente de uma nova fase da fabricante nacional.

O plano de voo da Embraer é ser, cada vez mais, uma empresa de tecnologia, não apenas uma fabricante de aviões. Para isso, ela está se aproximando de gigantes do setor, como a sueca Saab e a Boeing, fornecendo e recebendo inovações tecnológicas. Prova disso é que um grupo de 200 engenheiros brasileiros está se mudando com a família para a Suécia nos próximos dois anos. Eles serão responsáveis por trazer ao Brasil a mais alta tecnologia de sistemas de navegação e combate da aviação militar. Esse esforço deve, em breve, render dividendos de conhecimento para as outras áreas da indústria aérea.

Já a Boeing irá ajudar a Embraer a vender o cargueiro no mercado internacional, em um arranjo de forças que seria impensável há poucos anos. Em novembro passado, uma delegação que incluía o ministro da Defesa, Raul Jungmann, o comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Nivaldo Luís Rossato, e os presidentes da Embraer, Paulo Cesar de Souza e Silva, e da Saab, Håkan Buskhe, estiveram em Gavião Peixoto para inaugurar o Centro de Projetos e Desenvolvimento do Gripen. Trata-se de um esforço conjunto entre a empresa brasileira e a sueca que vai resultar na criação da versão nacional do caça Gripen, o novo avião de ataque da Força Aérea.

É um empreendimento de alta tecnologia. O Gripen traz embarcado o que há de mais avançado no mundo em sistemas de voo e combate. O prédio que abriga o centro também conta com o estado da arte em simuladores e equipamentos de testes. Do lado de fora, uma réplica do avião repousa, imponente, sob o sol forte. Apenas alguns militares, no entanto, com seus impecáveis uniformes, se arriscam fora do ar-condicionado para tirar uma foto com a estrela do lugar, tendo o céu azul e a cana-de-açúcar como pano de fundo. Esse contraste entre o moderno e o agrário, a natureza e a tecnologia, é a epítome do que se transformou a Embraer.

A empresa, fundada em 1969, nos Anos de Chumbo da ditadura militar, é hoje uma potência do mercado de aviação, um setor dominado pelas maiores economias do mundo. Ela teve, inclusive, a ousadia de vender equipamentos militares nos Estados Unidos, nas barbas de gigantes do setor de defesa, como a Lockheed Martin. “É um desafio grande para uma empresa de um país emergente”, afirma o presidente. “Na aviação, os países desenvolvidos dominam.” Pode ser. Mas a Embraer é a exceção que confirma a regra. A posição confortável no mercado é fruto de uma guinada que começou há quase duas décadas.

Nesse período, a fabricante conduziu um processo de diversificação da atuação, saindo do foco total na aviação comercial, para se tornar a única do mercado a operar em todas as divisões da aeronáutica: comercial, executiva e militar. A longa história de sucesso se repetiu, em especial com a linha Legacy, de jatos executivos, e o Super Tucano, caça turboélice que se tornou o xodó da Força Aérea Americana. Mas a grande virada da companhia se deu quando ela passou a se posicionar como uma empresa de tecnologia de aviação, e não apenas uma fabricante de aeronaves. O foco saiu do produto, para o cliente. “Desenvolvemos soluções”, afirma o presidente. “Buscamos entender a necessidade do mercado, então trazemos isso para dentro da companhia e criamos a tecnologia.”

Pode parecer algo trivial, mas, em se tratando de aeronáutica, inovações tecnológicas significam, muitas vezes, rupturas de mercados. Aquele contraste tão brasileiro, porém, sempre teima em aparecer. No ano passado, a Embraer admitiu ter pagado propina durante processos de venda em quatro países, entre 2007 e 2011. Para encerrar as acusações, a empresa fechou um acordo com as Justiças dos Estados Unidos e do Brasil, pelo qual se comprometeu a pagar US$ 206 milhões em multas. “Anos atrás, a Embraer não teve a governança necessária para atuar em certas operações”, afirma Silva. “Foi lamentável, somos responsáveis, mas não vai mais acontecer.”

Seis meses antes do anúncio do acordo, uma reportagem do jornal americano Wall Street Journal afirmou que o alto comando da empresa sabia das propinas. Pouco depois, o então presidente da Embraer, Frederico Curado, deixou o posto, sendo substituído por Silva, na época o comandante da divisão de jatos comerciais. A Embraer alegou que a mudança já era prevista. Silva afirma que as investigações estavam ocorrendo havia seis anos e que a empresa colaborou voluntariamente. O escândalo arranhou a imagem da companhia. É verdade que as propinas, totalizando pouco menos de US$ 6 milhões, envolveram a venda de 16 aviões, de um universo de oito mil.

Mas a mancha dos malfeitos acabou afetando toda a corporação. Silva admite, inclusive, que os escândalos recentes do País, como a operação Lava Jato, também não ajudam a polir a imagem da companhia no exterior. O caso deixou uma lição e serviu para a Embraer arrumar a casa, segundo o presidente. “Mudamos todos os sistemas e a forma como gerenciamos os relacionamentos”, diz. “Agora, queremos conhecer nossos parceiros e clientes e quem está por trás deles.” Pelo acordo, a empresa precisou contratar um auditor independente, aprovado pela Justiça Americana, que terá acesso total às operações da fabricante.

Foi um passo necessário para não jogar por água abaixo um esforço de cinco anos, que consumiu investimentos de US$ 5 bilhões. Esse é o tempo que levou o último ciclo de desenvolvimento da fabricante, que se encerra neste ano com os lançamentos recentes do Legacy 450, jato executivo de médio alcance, da família E2, de jatos comerciais e, principalmente, do gigante KC-390, um avião militar de carga, com capacidade de transportar 23 toneladas e custo estimado de US$ 50 milhões, que será o substituto do ultrapassado Hercules, usado pela FAB. “Agora é o momento de monetizar esses investimentos entregando os aviões”, diz Silva. Isso vai acontecer, no caso do Legacy e do E2, ao longo deste ano. A FAB começa a receber o KC-390 a partir de 2018.

Esse último ciclo de desenvolvimento é muito importante na história da empresa. Para dar essa virada, a Embraer teve de se colocar em pé de igualdade com as maiores forças do mercado aeronáutico. Nesse sentido, a área militar e as parcerias se mostraram extremamente importantes. O caso do Gripen é emblemático. “A Embraer terá acesso a todo o material confidencial do avião”, afirma Bengt Janér, diretor do projeto Gripen Brasil na Saab. “São tecnologias de ponta, que, provavelmente, poderão ser utilizadas em outras áreas.”

Essa transferência de inovações da área militar para a civil é chamada de “transbordamento”, no jargão do setor. O Brasil terá uma versão exclusiva do Gripen, de dois lugares. “A ideia é que o copiloto comande um sistema independente, como um drone que possa neutralizar os radares inimigos”, afirma Janér. “É uma grande inovação” O KC-390 também conta com uma parceira, a Boeing. A empresa americana irá ajudar a Embraer a vender o cargueiro pelo mundo, ficando, também, responsável pela manutenção. O interesse da companhia pela aeronave se justifica. Seu potencial de mercado é imenso.

Hoje, o grande concorrente do KC-390 é o C-130 Hercules, da Lockheed Martin, um antigo projeto turboélice que remete à Segunda Guerra Mundial. A frota atual de aviões desse porte é de 2,7 mil unidades, sendo que a média de idade ultrapassa 30 anos. “O KC tem o que há de mais moderno e, além disso, é um jato”, afirma Silva. Isso faz com que ele possa cumprir as mesmas missões do Hercules, só que 30% mais rápido. A FAB encomendou 28 aeronaves, ao custo de R$ 7,2 bilhões. Mas a Embraer já recebeu cartas de intenção de Portugal, República Tcheca, Argentina, Colômbia e Chile. A expectativa é vender 700 unidades nos próximos 20 anos.

BRIGA ANTIGA Apesar da diversificação da última década, a aviação comercial ainda representa a maior parte da receita da companhia e respondeu por US$ 3,65 bilhões, no ano passado. Nesse setor, encontra-se a maior rival da Embraer: a canadense Bombardier. As duas companhias protagonizaram uma disputa ferrenha na Organização Mundial Comércio (OMC), no início dos anos 2000, por divergências na forma de financiamento de aeronaves. No início deste mês, o Brasil iniciou um questionamento na OMC contra subsídios de US$ 4 bilhões dados pelo governo do Canadá à fabricante.

“São subsídios ilegais por estarem condicionados à exportação”, afirma o embaixador Carlos Márcio Cozendey, subsecretário-geral para Assuntos Econômicos e Financeiros do Ministério das Relações Exteriores. A decisão de entrar na OMC se deu a pedido da Embraer, depois que a empresa perdeu uma venda na companhia aérea americana Delta para a Bombardier. O presidente da Embraer eleva o tom da disputa. “A Bombardier só está operando por causa da ajuda do governo canadense”, diz o executivo. Mas a rival está confiante. “A simples verdade é que temos o melhor produto”, afirmou a Bombardier, em nota enviada à DINHEIRO.

Já o governo do Canadá se mostra pronto para brigar por sua indústria. “O setor aeroespacial canadense, incluindo a Bombardier, é de importância estratégica para o Canadá e o país está disposto a defender suas medidas de apoio”, disse, por e-mail, a Embaixada do Canadá no Brasil. “As medidas de apoio à Bombardier foram desenvolvidas com pleno conhecimento dos regulamentos da OMC e são consistentes com estas obrigações.” Por trás dessa disputa, há um mercado com previsão de entrega de 6,4 mil aeronaves até 2035. A Embraer lidera o segmento de jatos até 130 assentos, com 61% do mercado.

Se, na área comercial, a disputa é com uma grande rival, na executiva a situação é mais diversa. E a vida tem sido difícil para a Embraer. Nesse segmento, ela concorre em várias categorias, dependendo do alcance do jato. Suas rivais diretas, no entanto, estão se dando melhor. Segundo dados da consultoria Gama General Aviation, a brasileira entregou 74 aeronaves, até setembro do ano passado. A americana Gulfstream, que tem um portfólio muito menor, por exemplo, entregou 88 aviões. Já a também americana Textron, dona da Cessna, entre jatos e turboélices, ultrapassou 300 aeronaves entregues.

“É natural que a Embraer passe a dar menos ênfase à executiva por ter margens menores”, afirma um executivo do setor, que não quis se identificar. “Afinal, fabricar um jato comercial e um privado custa quase a mesma coisa.” Na quinta-feira 16, a empresa brasileira promoveu uma mudança de comando nesse setor. O executivo Michael Almafitano assumiu a presidência da unidade de jatos executivos, no lugar de Marco Tulio Pellegrini. As estimativas da Embraer mostram que o segmento ainda é lucrativo. Até 2026, devem ser entregues 8,4 mil jatos executivos no mundo, que movimentarão US$ 244 bilhões.

A questão é que, segundo o presidente da fabricante, ainda não se sabe que avião será esse – e isso vale para todos os segmentos. “O mundo está passando por transformações muito rápidas”, diz Silva. “Há novas tecnologias, novos modelos de negócios, a era digital. Ninguém sabe como a transformação vai acontecer.” Ele cita, como exemplo, o carro autônomo, que deve se tornar realidade em cinco anos, pelos seus cálculos. Para não ficar presa ao passado, a Embraer mantém um grupo de engenheiros pensando no futuro. “Estão olhando para novos materiais, modelos de negócios, tecnologias”, afirma.

Quem perguntar ao presidente se a Embraer está desenvolvendo um avião elétrico, ouvirá um não. “Mas, uma aeronave movida a energia solar está cada vez mais no radar”, diz Silva. Nesse sentido, existem desafios enormes, como a armazenagem de energia. É apenas um norte, que pode definir uma rota. Porém, como ele mesmo afirma, “ninguém sabe hoje o que ainda não se sabe”. Caberá à Embraer liderar a transição para um modelo renovável de propulsão elétrica no mercado aeronáutico? Só o futuro irá dizer. Mas o provável é que, dificilmente, a companhia ficará perdida no passado.

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