De 2005 a 2016, o brasileiro Eduardo Navarro viveu em Madri, onde exerceu diversos cargos executivos no grupo Telefónica. O último deles foi o de diretor geral comercial e digital da operadora espanhola. De lá, ele foi espectador privilegiado da crise que passou a Espanha. O remédio, lembra Navarro, foi amargo: um ajuste fiscal duríssimo e o aumento de impostos. Hoje, à frente da Telefônica Brasil, maior operadora de telefonia do País, com receitas de R$ 42,5 bilhões, Navarro diz que a lição da recessão espanhola é que o “Brasil não sairá dessa crise sem dor e sem reformas”.

Nesta entrevista, Navarro fala sobre a reinvenção do setor de telefonia, da competição com empresas de internet e de como as operadoras tradicionais precisam se preparar para o mundo digital. Ele também analisa as obrigações antigas que as empresas ainda têm de cumprir, como a instalação de telefones públicos. “Em um país com recursos escassos, estamos jogando dinheiro fora para atender obrigações que já não têm nenhuma vinculação com o novo mundo digital.” Confira:

DINHEIRO – O setor de telefonia está passando pela sua maior reinvenção desde que Alexander Graham Bell criou o telefone?

EDUARDO NAVARRO – Seguramente. Inclusive, nem chamaria mais de setor de telefonia, pois é mais do que telefone. Não sei se chamaria de setor de conectividade ou de dados. Mas ele transcende ao que é um telefone. As pessoas utilizam o smartphone para tudo ou quase tudo, menos para falar. Quando entrei na Telefônica, há 19 anos, vendíamos telefonia fixa, longa distância nacional e internacional, telefone público e anúncios em páginas amarelas. Esses serviços representam atualmente uma parcela insignificante da nossa receita. Hoje, os serviços de não voz já representam dois terços da receita da Telefônica. Só para dar um exemplo. A conexão que fornecemos hoje para apenas uma casa em Barcelona é a mesma que oferecemos durante a Olimpíada de 1992, há mais de 25 anos.

DINHEIRO – O senhor não tem medo das empresas de internet? Google, Facebook, Amazon ou Netflix já não são os principais competidores da Telefônica?

NAVARRO – Eles colaboram em algumas áreas e competem em outras. Na nossa atividade básica, que é a conectividade, nenhum deles concorre conosco. Ao contrário: eles usam a nossa infraestrutura e isso gera mais interesse para comprar nossa banda larga. Nossa maior preocupação é quando eles começam a oferecer serviços substitutos, mas com regras muito diferentes, como é o caso do WhatsApp. Hoje, somos obrigados a fazer interceptação de qualquer chamada telefônica com ordem judicial. Isso gera uma complexidade enorme. Com o WhatsApp, não se pode fazer essa interceptação. Se vamos competir, qual o conjunto de regras que vale para os dois?

DINHEIRO – A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) prometeu fazer essa regulamentação. Há algum avanço?

NAVARRO – Não, mas prefiro que desregulamentem os nossos serviços. Temos tantas obrigações e algumas delas são ligadas ao passado, como a meta de telefones públicos nas ruas.

DINHEIRO – Aplicativos desenvolvidos por startups são capazes de chacoalhar um setor inteiro. Um exemplo é o WhatsApp, que o senhor já citou, e até mesmo a Netflix. Como companhias gigantes e muitas vezes burocráticas podem competir com essas empresas pequenas e ágeis?

NAVARRO – Temos de nos tornar mais ágeis e mais digitais. Mas não podemos achar que somos uma dessas empresas. O nosso DNA é diferente. Uma empresa como a nossa tem dezenas de milhares de antenas e milhões de quilômetros de fibras e dutos. Não se substitui essa infraestrutura física por um aplicativo. Mas temos um caminho grande a percorrer. Temos de fazer uma transformação digital, mas não podemos incorrer no erro de achar que vamos nos converter em um WhatsApp.

DINHEIRO – O senhor diz que a Telefônica não pode ser resumida a um aplicativo. Mas ela já vende aplicativos de curso de inglês, de músicas e séries, entre tantos outros. O que essas atividades têm a ver com o negócio da companhia?

NAVARRO – Quero proporcionar aos meus clientes a melhor experiência digital de suas vidas. Primeiro preciso oferecer a base: a rede tem de funcionar e a banda larga tem de ser larga. Isso é necessário, mas não é suficiente. A segunda coisa é que queremos que toda a interação conosco seja feita de forma digital. E a terceira: quero que o consumidor possa ter acesso a uma série grande de aplicativos. Quase nenhum deles feito por nós, mas quase todos desenvolvidos por terceiros em alianças conosco.

O presidente Michel Temer faz pronunciamento para se defender de denúncias de corrupção (Crédito:Beto Barata/PR)

DINHEIRO – Essa modelo de negócio será relevante em termos de receita?

NAVARRO – Já é importante. Esses serviços digitais representam, em nível mundial, mais de E 5 bilhões ao ano. Isso representa mais de 10% da receita da companhia. Eles geram valor em si mesmos, mas ajudam a fidelizar o cliente nos serviços básicos de telefonia.

DINHEIRO – Pode-se afirmar que a batalha entre as operadoras se dará, daqui para frente, no front dos dados?

NAVARRO – Sim. Estamos em uma guerra de velocidade. O consumo de dados está crescendo 80% ano ante ano. Não existe um serviço que cresça a essas taxas no mundo. Temos de construir estradas adaptadas a uma proporção na qual a quantidade de carros se multiplica por 10 a cada cinco anos. Se pensar em 10 anos, multiplica-se por 100. Em 15 anos, por mil. Só se consegue dar vazão a isso com uma quantidade enorme de investimentos.

DINHEIRO – Hoje, existem quatro grandes empresas de telefonia no Brasil – uma delas, a Oi, passando por grave crise e em recuperação judicial. O ditado popular diz que um é pouco, dois é bom e três é demais. E quatro ?

NAVARRO – O próprio mercado vai dizer. A construção dessas redes vai requerer investimentos enormes. A grande pergunta é: essas quatro empresas vão ter fôlego para fazer todos os investimentos necessários para a transformação da rede? Só no nosso caso são R$ 24 bilhões em três anos. Estamos investindo de forma recorrente, pelo menos, R$ 8 bilhões ao ano. Acho que mais do que a questão de que se são três ou quatro, é em que área cada uma delas vai se focar. Se as quatro tentarem competir exatamente pelos mesmos mercados e clientes, talvez não exista dinheiro suficiente para fazer o desenvolvimento de quatro redes que competem entre si.

DINHEIRO – A Telefônica tem interesse na Oi?

NAVARRO – A Oi não é um ativo que nos interessa. Você me perguntou se tem espaço para quatro operadoras. Creio que há espaço para a Oi. Há muitas cidades que só são atendidas pela Oi em telefonia fixa. Ela é uma operadora importante e espero que se recupere desse processo de recuperação judicial.

DINHEIRO – A nova Lei Geral de Telecomunicações, ainda não sancionada, muda o modelo de concessão para autorização. Isso é fundamental para o setor? Por quê?

NAVARRO – Ela é importante para o setor, mas acho que é mais importante ao País. A Telefônica não depende de nada dessa regulamentação. Mas estamos convencidos de que poderíamos prestar um serviço muito melhor para a sociedade se a lei vier a ser implementada. A estrutura dorsal da regulamentação brasileira se dá no serviço fixo de voz. Isso me leva a ter um telefone público em cada esquina e que ninguém usa. Quer exemplos? 75% dos telefones públicos que temos têm menos de uma chamada a cada três dias e 30% não têm nenhuma chamada no mês. O custo para mantê-los é muito elevado. As empresas de telefonia são obrigadas a levar telefonia fixa para localidades com mais de 300 habitantes. Desses 18 mil lugares, 20% não têm nenhum cliente. Outros 40% têm menos de 10.

O WhatsApp, do Facebook, é um aplicativo que ajudou as operadoras a perderem receita com voz (Crédito:Allan White)

DINHEIRO – O que o senhor sugere para mudar esse cenário?

NAVARRO – Temos um conjunto de obrigações que estão associadas ao passado, que custam muito e que geram pouco valor à sociedade. Enquanto isso, só existem 370 cidades no Brasil com velocidade de internet fixa acima de 10 Mbps, menos de 10% dos mais de 5 mil municípios brasileiros. Em um país com recursos escassos, estamos jogando dinheiro fora para atender obrigações que já não têm nenhuma vinculação com o novo mundo digital. O que a lei propunha era jogar fora essas obrigações e, em troca, criar novas mais associadas ao mundo digital.

DINHEIRO – Mas qual seriam essas obrigações? O projeto de lei não deixa claro quais seriam.

NAVARRO – A questão é se essas obrigações precisam estar na lei ou em regulamentações. Uma lei é feita para durar muitos anos. Mas pode ter faltado, por parte do setor e dos órgãos públicos, deixar mais explícito as obrigações.

DINHEIRO – O senhor viveu muitos anos na Espanha, que passou por uma grave crise, com altas taxas de desemprego. A crise brasileira é semelhante?

NAVARRO – A origem das crises é diferente. A Espanha teve um boom imobiliário. E, de repente, a bolha estourou e se descobriu que parte da economia espanhola estava baseada no que eles chamavam de economia do “ladrilho”, do tijolo. A taxa de juros era tão baixa, tão baixa que se comprava duas, três casas. Nesse sentido, a crise espanhola é mais parecida com a americana.

DINHEIRO – Quais as lições que o Brasil deveria tirar da crise espanhola?

NAVARRO – Acho que a lição é que o Brasil não sairá dessa crise sem sofrimento e sem reformas. A Espanha fez um aperto fiscal duro, com aumento de todos os impostos. Mas é um país com uma rede de proteção social muito mais desenvolvida que o Brasil. A Espanha conseguiu conviver com um desemprego de 25% sem ter um caos social. O Brasil não conseguiria conviver com essas taxas sem um caos social. É provável que os remédios sejam parecidos. O Brasil precisa de um choque de produtividade. Mas é preciso tomar cuidado com a dosagem, pois uma dose que cura um paciente mais forte pode matar um mais debilitado.

DINHEIRO – Essa crise está paralisando a economia brasileira?

NAVARRO – A impressão que tenho é que o Brasil está ficando vacinado contra as crises políticas. A economia não está avançando na velocidade que poderia. Mas, apesar disso, a flutuação do dólar não foi muito grande e os investimentos diretos no Brasil estão crescendo. Há uma visão, no Brasil e no resto do mundo, de que o potencial do Brasil é tão bom que vamos resolver os problemas logo. Vamos sair da adolescência e entrar na fase adulta como um País melhor.

DINHEIRO – A crise impacta os investimentos da Telefônica no Brasil?

NAVARRO – Nossos investimentos são de longo prazo. Não tenho nenhuma dúvida de que daqui a quatro anos, o consumidor vai consumir mais internet. O Brasil é um dos cinco maiores mercados de telecomunicações do mundo e absolutamente prioritário para a Telefônica.