Há pelo menos três anos, trabalhadores e empresários da indústria de eletroeletrônicos convivem com a incômoda sensação de que o setor caminha para trás. O retrato mais vivo dessa situação se expressa no dado de desemprego. O total de funcionários em fábricas como as de celulares e chips equivale hoje ao nível de 2005: 233 mil pessoas. Para esse grupo, portanto, pouco surpreende o diagnóstico de que o País vive uma recessão histórica. O quadro catastrófico foi confirmado pelo IBGE na terça-feira 7, com o recuo de 3,6% no PIB de 2016, o segundo seguido na comparação anual, acumulando uma retração de 7,2% no biênio. Se o número não espanta o setor, deixa o País em alerta. A crise fez a atividade retroceder ao patamar de 2010 e deve deixar marcas profundas na economia por muitos anos. Também sobram lições abundantes sobre o que não fazer nunca mais em termos de gestão econômica.

Por trás desse recorde vergonhoso está a política sustentada pela ex-presidente Dilma Rousseff, que patrocinou o congelamento de tarifas, um intervencionismo exagerado, a explosão dos gastos públicos e criação de uma “Nova Matriz Econômica” que implodiu os pilares que sustentavam a economia. Isso, sem contar o enorme prejuízo das estatais com a corrupção sistêmica e o aparelhamento. Dado o tamanho do buraco, é provável que os brasileiros tenham de amargar a percepção de empobrecimento por mais algum tempo. Nos cálculos do Bradesco, o PIB per capita deve levar mais sete anos para voltar ao pico recente, registrado em 2013, praticamente uma década de estagnação.

dobrando a aposta: o então ministro da fazenda, guido mantega, à esquerda, com arno augustin, ex-secretário do tesouro nacional, ajudaram a implementar a chamada nova matriz econômica, que abalou a estabilidade macroeconômica e trouxe risco de insolvência
Dobrando a aposta: o então ministro da Fazenda, Guido Mantega, à esquerda, com Arno Augustin, ex-secretário do Tesouro Nacional, ajudaram a implementar a chamada nova matriz econômica, que abalou a estabilidade macroeconômica e trouxe risco de insolvência (Crédito:Ed Ferreira/AE)

O PIB per capita mostra a evolução da riqueza com mais detalhe porque considera também o avanço da população. Como expressou Rebeca Palis, coordenadora de contas nacionais do IBGE, “é como se o bolo tivesse diminuído e mais pessoas quisessem comer.” Isso explica a queda em 2014, mesmo quando o crescimento da atividade como um todo ficou em 0,5%, cenário semelhante ao esperado para 2017. No triênio 2014-2016, o PIB per capita recuou pouco mais de 9%. Um paralelo histórico permite dimensionar melhor o desempenho. Na chamada Década Perdida, há dois momentos de destaque: a crise da dívida externa, de 1980 a 1983, com queda de 12,6% e o Plano Collor, que confiscou a poupança, de 1989 a 1992 (8,6%).

Quando se olha apenas o número do PIB, a cena tampouco traz mais alento. Não há registro de desempenho tão negativo na série mais antiga do IBGE, iniciada em 1948. Nas estimativas que tentam alcançar um período mais longo, até 1901, apenas após a Grande Depressão é que o País marcou dois anos seguidos de recuo, em 1930 (-2,1%) e 1931 (-3,3%). Uma análise mais profunda do Comitê de Datação de Ciclos (Codace), ligado ao Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV, atesta o caráter histórico. A recessão atual já se estende por 11 trimestres, empatada com a mais longa crise registrada pelo grupo, no Plano Collor.

Pela metodologia utilizada, a partir de um conjunto bem mais amplo de dados, não é possível dizer ainda se o ciclo chegará ao fim no primeiro trimestre, mesmo considerando as previsões de alta do PIB no período. “Essa recessão veio acompanhada de alguns efeitos estruturais sobre a economia que ainda estamos tentando entender”, diz Paulo Pichetti, coordenador do IPC Brasil do FGV/Ibre e membro do Codace. “Que teve impacto no crescimento potencial, eu acho claro, pela perda de qualidade do ambiente institucional.” Um dos papéis do trabalho do Codace é identificar com mais precisão os ciclos para que o País possa balizar melhor suas políticas econômicas a partir dos erros e acertos do passado. Para economistas e empresários, a crise atual já deixa algumas lições.

Às compras: Insistência em políticas de incentivo ao consumo, como a redução do IPI, deixou um quadro de endividamento elevado e acabou se esgotando como força de crescimento do pib
Às compras: Insistência em políticas de incentivo ao consumo, como a redução do IPI, deixou um quadro de endividamento elevado e acabou se esgotando como força de crescimento do PIB

A principal delas é que não há como forçar o crescimento com artificialismos, sem cuidar da estabilidade macroeconômica e da saúde fiscal. “A ideia que podia gastar tudo que queria se provou errada”, afirma o ex-diretor do Banco Central, Alexandre Schwartsman. “Quando chega numa situação de desequilíbrio fiscal a que alcançamos e se casa isso com uma crise política e um governo incapaz de tratar a questão, aí tem uma baita recessão.” O resultado do biênio é visto como um retrato de um modelo de crescimento excessivamente baseado no consumo. Estímulos como a redução do IPI e a concessão abundante do crédito foram mantidos na gestão da presidente Dilma Rousseff mesmo diante dos sinais nítidos de esgotamento.

O excesso é reconhecido até por quem chegou a apoiar as medidas e com potencial de se beneficiar delas. “O Brasil usou esse incentivo até o limite”, afirma Humberto Barbato, presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee). O setor teve uma redução de quase 30% no emprego desde 2013. “Ou a gente faz as reformas que temos de fazer ou a indústria diminuirá de tamanho.” Os incentivos entraram em campo a partir de 2008, com a crise financeira mundial. A redução do IPI para veículos e a concessão mais agressiva do crédito nos bancos públicos foram bem recebidas, como parte de um instrumental anticíclico que evitou um tombo maior do País no auge da tormenta. Como consequência, em 2010, o PIB cresceu 7,5%.

A fórmula não só foi mantida, como ampliada. Isso, num momento em que o boom de commodities perdia força e reduzia o potencial de entrada de recursos ao País. Em paralelo, a equipe econômica do governo, formada por nomes como o do ministro da Fazenda, Guido Mantega, e do secretário do Tesouro Nacional, Arno Augustin, criavam a nova matriz econômica, uma proposta de crescimento alternativa ao tripé macroeconômico (superávit fiscal, meta de inflação e câmbio flutuante), vigente até então, com medidas como a redução forçada dos juros. Das taxas dos empréstimos aos preços de energia, as intervenções do governo na economia se tornaram frequentes e aumentaram as incertezas. Para sustentar políticas de desonerações e de juros subsidiados, o gasto público subiu e a tentativa foi encobrir o desfalque com manobras contábeis. Desastre total. “Quando se tenta reiventar a roda com políticas voluntaristas e intervencionismo, mais cedo ou mais tarde dá errado”, afirma Marcelo Carvalho, economista-chefe do BNP Paribas (leia entrevista aqui).

DIN1009---Licoes4A intenção de manter os juros artificialmente baixos se traduziu em mais inflação e acentuou o quadro de falta de confiança. Na outra ponta, o congelamento dos preços da gasolina e da energia tentavam conter os reajustes. Ao redobrar a aposta nas desonerações, em 2014, a situação fiscal se agravou de vez. “Houve uma percepção de descontrole dos fundamentos da economia”, afirma Igor Velecico, economista do Bradesco. “Isso derivou em grande medida da percepção de quase insolvência do governo.” Após a eleição, o Brasil perdeu o selo de bom pagador (grau de investimento) e o risco-país disparou, com impactos negativos na inflação, nos juros e na confiança de empresários e consumidores. “Políticas macroeconômicas populistas podem trazer algum incentivo de curto prazo, mas a médio e longo prazo você devolve tudo pagando juros e correção monetária”, afirma Fernando Pimentel, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit).

CRESCIMENTO POTENCIAL Com o recuo de 10% em 2016, a taxa de investimento atingiu o menor patamar em 20 anos, de 16,4%, abaixo da série histórica e dos principais países emergentes. Indústria (-3,8%), agropecuária (-6,6%) e consumo das famílias (-4,2%) também tiveram queda no ano passado. A expectativa é que a economia comece a reagir no primeiro trimestre, puxada sobretudo pelo agronegócio. Em evento com empresários, em Brasília, na terça-feira 7, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, classificou o resultado como um “espelho retrovisor” e indicou que o crescimento irá se acelerar ao longo do ano.

O mercado prevê um PIB de 0,5% em 2017. Para os analistas, o dado de 2016, que traz uma influência estatística negativa de cerca de 1% para este ano, pode levar o Banco Central a acelerar o ritmo da queda dos juros. Essa percepção foi corroborada na sexta-feira 10, com a divulgação da inflação de 0,33% em fevereiro, no menor patamar para o mês desde 2000. Foi a primeira vez, desde março de 2012, que o IPCA ficou abaixo de 5% no acumulado em 12 meses. O resgate do tripé macroeconômico, somado a uma vigilância maior com a inflação e a previsão de reformas sinalizam um período de crescimento adiante.

O Pib debate o pib: no mesmo dia da divulgação do Ibge, na terça-feira 8, empresários debatiam, com o presidente temer e sua equipe, em Brasília, caminhos para melhorar o ambiente de negócios no país
O PIB debate o PIB: no mesmo dia da divulgação do IBGE, na terça-feira 8, empresários debatiam, com o presidente Temer e sua equipe, em Brasília, caminhos para melhorar o ambiente de negócios no país

O debate que surge agora é até que ponto a recessão abalou o dinamismo da economia e a capacidade potencial do PIB –o quanto é possível avançar sem criar pressões inflacionárias. “A verdade é que regredimos uns seis, sete anos e vamos gastar mais uns dez para tentar voltar onde estávamos”, afirma Pimentel, da Abit. O grau de profundidade da crise dificulta enxergar a questão com clareza – para o Bradesco, por exemplo, o intervalo tem uma variação grande, de 1% a 4%. Há consenso, porém, de que o ciclo recessivo atual deve impactar o potencial do PIB para baixo. A fórmula repetida pela maioria dos economistas para reverter a perda de fôlego é avançar numa melhora do ambiente de negócios. Daí surge uma outra lição da crise, de se adotar políticas que privilegiem o longo prazo, para garantir estabilidade e visibilidade aos investimentos do setor privado.

No rearranjo do modelo de crescimento, essa variável deve ganhar um peso maior. “Estimular o consumo sem ter a ponta do investimento para gerar riqueza, vai gerar inflação”, afirma Fernando Figueiredo, presidente da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim). Espera-se que, de fato, possamos aprender com os erros da recessão. Não será possível suportar de novo uma conta cara como a que pagamos agora, com uma massa de quase de 13 milhões de desempregados e mais de 200 mil lojas fechadas no biênio. Como definiu o economista Luis Paulo Rosenberg em comentário recente, o Brasil viveu uma catástrofe que machucará o tecido econômico por muito tempo.

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