Grupos religiosos de matriz africana solicitaram hoje (20), em audiência pública no Rio de Janeiro, a entrega de peças religiosas consideradas sagradas. Os objetos estão sob a posse da Polícia Civil, que confiscou os objetos no início do século 20. Na época, cultos afrobrasileiros eram classificados como crime pelo Código Penal vigente na época. As peças compõem uma coleção, atualmente fechada ao público denominada pejorativamente de “Magia Negra”, no Museu da Polícia Civil, que está em reforma.

Em audiência na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), não houve consenso entre os grupos religiosos que reivindicam as peças e o governo do Rio. A Polícia Civil, órgão do estado, reivindicou o acervo e demonstrou a intenção de exibi-lo no futuro.

Para discutir uma solução, foi criado um grupo de trabalho, com participação de lideranças religiosas, da própria polícia, do Ministério Público Federal (MPF), parlamentares e de outros órgãos públicos. Em até quinze dias, de posse de documentos sobre as condições do acervo, de cerca de 200 peças segundo os religiosos, o grupo fará sua primeira reunião.

Paralelamente, a Comissão de Direitos Humanos da Alerj solicitará ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a mudança imediata do nome da coleção. O nome “Magia Negra” reforça o preconceito contra a umbanda e o candomblé, dizem os sacerdotes.

Restituição

A responsável pelo terreiro Ilê Omolu Oxum, na Baixada Fluminense, que desde a década de 1980 defende a restituição das peças, Mãe Meninazinha de Oxum, disse que a audiência voltou a tratar de um tema esquecido. Hoje, ela propõe a devolução como segunda opção.

“O certo seria, não vou falar em museu, mas em memorial para esse sagrado, não se fala em peças, [para que] possa receber visitação, para que as pessoas possam conhecer essa história”, disse a sacerdotisa de 79 anos, uma das lideranças da campanha Libertem Nosso Sagrado.

Nos cálculos de Mãe Meninazinha, a Polícia Civil tem a guarda de centenas de peças, entre assentamentos (objetos de representação), símbolos dos orixás, instrumentos musicais, além de roupas rituais. Ela chegou a ver as peças uma vez, há mais de uma década.

Com a mediação entre a sociedade e governo do estado, parlamentares pretendem suspender inquérito aberto pelo MPF pedindo a repatriação dos objetos. Os procuradores argumentam que os crimes que motivaram as apreensões não existem mais, caíram com as leis do Estado Laico, e querem que as peças sejam entregues aos religiosos. Segundo as autoridades, a guarda das peças no Museu da Polícia Civil, sem tratamento adequado, trata-se de racismo religioso.

Reparação

Segundo o deputado estadual Flávio Serafini (PSOL), que convocou a audiência, o grupo de trabalho continuará a discussão sobre a reparação de um erro histórico e, caso não se chegue a uma conclusão, o MPF voltará a ser acionado para dar andamento à ação judicial. “As religiões poderão amadurecer a proposta da Secretaria de Cultura, de intermediar a relação, recebendo as peças por um tempo e formatar uma proposta para o futuro”, explicou.

A Polícia Civil reivindica o acervo como parte da história da corporação e lamentou não ter condições de exibi-la agora, por problemas de infraestrutura na sede. O diretor do Museu da Polícia Civil, Cyro Advínculo, defendeu, contudo, a manutenção das peças onde estão.“Um museu não apreende suas peças, um museu preserva, pesquisa e expõe”, disse, na audiência. “Todos os museus constituem seus acervos com os objetos mais variados, que pertenceram a outras pessoas, grupos ou nações, e que, por circunstancias históricos, foram abrigados nesses espaços”,

O representante da chefia de Polícia Civil, Gilbert Stivanello, acrescentou que a instituição terá “uma enorme felicidade” em abrir o acervo à população, quando possível. A intenção é evidenciar a mudança de atuação da polícia ao longo dos anos. “Queremos mostrar o que o tempo faz, a polícia lá atrás, que cooperou para a intolerância religiosa, está sendo substituída por uma polícia que quer firmemente combater a intolerância para que o passado de erros não se repita”.

Já o secretário estadual de Cultura, André Lazzaroni, está de acordo com a devolução, identificação e exibição do acervo em outras condições. Ele comparou a guarda das peças com o confisco de obras de artes por nazistas. “Se entendermos que o Estado é o verdadeiro dono desse acervo, concordaremos que a Alemanha e a Áustria são donas do acervo roubado dos judeus”.

*Com Raquel Júnia, repórter do Radiojornalismo