A mais profunda recessão da história da economia brasileira se apresentou, nos últimos dois anos, como um teste de fogo para toda a indústria automobilística. As montadoras instaladas aqui, cada uma a seu modo, definiram estratégias ousadas para garantir a sobrevivência da operação, diante de um mercado que despencou quase 50%, entre 2012 e 2016. Com a francesa Citroën, marca integrante do grupo PSA, que pagou à GM € 2,2 bilhões pela compra da Opel, na semana passada, não foi diferente. O comandante da operação no País, Paulo Solti, participou, junto com a PSA, de uma reorganização sem precedentes na subsidiária, desde a demissão de funcionários em vários departamentos, redução de custos de produção na fábrica de Porto Real, no interior do Rio de Janeiro, até a renegociação com parceiros e fornecedores. “Fizemos o que tinha de ser feito assim que os primeiros sinais da crise começaram a aparecer”, afirmou o executivo à DINHEIRO. “A gente precisou se reinventar internamente, nos preparando para o futuro.” Acompanhe, a seguir, sua entrevista:

DINHEIRO – Como a Citroën reagiu ao recente aprofundamento da recessão no País?

PAULO SOLTI – A gente começou a se preparar para a crise muito antes de ela chegar. A PSA [que controla as marcas Citroën, Peugeot e DS] vinha se preparando desde 2012, por força da situação do grupo, inicialmente, e depois pela fraca evolução dos mercados. Então, nós terminamos 2014 já prontos para a recessão. Fizemos o que tinha de ser feito assim que os primeiros sinais da crise começaram a aparecer. Tínhamos nos reestruturado, adequado a produção para os novos patamares de venda, reduzido os custos e tomado todas as medidas necessárias. Por conta disso, conseguimos fazer uma reengenharia interna e nos segurar.

DINHEIRO – Essa antecipação à crise aconteceu de forma ágil pelo fato de a Citroën ser bem menor que as líderes de mercado?

SOLTI – Evidentemente, os movimentos de um mastodonte são mais lentos do que os de um animal menor. Mas posso dizer que a PSA e a Citroën são mais ágeis do que algumas outras não só pelo tamanho e pela escala de produção, mas também pela cultura. Como conseguimos nos antecipar à crise e nos ajustar internamente, levamos certa vantagem. O que pude observar, nos últimos anos, é que algumas montadoras tiveram muita dificuldade em perceber o movimento de queda do mercado e acabaram tendo que enfrentar a crise quando ela já estava instalada.

DINHEIRO – Quais foram os sinais que a Citroën enxergou e as rivais não?

SOLTI – O primeiro sinal foi a queda do ritmo de emplacamentos, a partir de 2013. Os indicadores estavam em queda e, olhando para o futuro, não havia nenhum indício macroeconômico de reversão dessa tendência. Consultamos vários especialistas e, de forma unânime, nos disseram que a curva não ia se reverter. Olhando o mercado, ouvindo os especialistas e consultando o ‘feeling’ dos concessionários percebemos que a situação se agravaria. Essa conjunção de informações fez com que tivéssemos uma leitura antecipada da recessão.

DINHEIRO – Mas já era possível prever a profundidade dessa crise?

SOLTI – Não. Hoje tenho a convicção de que estamos superando a primeira crise de verdade, no sentindo amplo da palavra, que já vivemos na história do Brasil. A gente sempre teve quedas muito violentas e subidas muito rápidas. Mas com intervalos mais curtos entre a queda e a subida. E esses ups and downs estavam, geralmente, sincronizados com acontecimentos internacionais, como as crises na Rússia, no México, na Ásia etc. Essa crise atual, mais prolongada, nos mostrou que a característica da recessão é outra e, por isso, é mais preocupante.

DINHEIRO – Vai melhorar?

SOLTI – Embora não tenha uma estatística confiável para te provar isso, acredito que estejamos deixando para trás a pior crise da história do País. Essa crise tem amplitude muito maior do que as outras que enfrentamos no passado. Antes, elas eram de origem política, ou de origem econômica interna ou internacional. A atual dificuldade do País é a combinação de tudo isso. É uma tempestade perfeita. Agora, para 2017, acredito que tenhamos um ano ligeiramente melhor.

DINHEIRO – As medidas adotadas pelo governo Temer lhe agradam?

SOLTI – O problema é que todos imaginavam, inicialmente, que a crise econômica terminaria com uma solução política. Não terminou. A gente percebeu uma euforia durante o processo de impeachment da ex-presidente Dilma, que tinha como base uma espécie de otimismo com a mudança que estava por vir. Ficou mais claro que as medidas de rearrumação da casa teriam de ser feitas através de reformas, que agora estão sendo elaboradas e, na minha visão, estão no caminho certo. Os efeitos, no entanto, vão tardar a vir. Não veremos tudo resolvido amanhã. Então, como a gente estava acostumado com o sobe-e-desce da economia, com os voos de galinha, agora vemos a necessidade de fazer ajustes mais estruturais, mais de longo prazo.

DINHEIRO – Então a recessão, como disse o ministro Henrique Meirelles, é uma imagem no retrovisor?

SOLTI – Torço para que sim. Tenho a percepção de que batemos no fundo do poço e, a partir de agora, vai começar a recuperar gradualmente, de forma lenta e sustentável. Mas, como todos sabem, no Brasil é impossível afirmar qualquer coisa sem correr um grande risco de errar.

Henrique Meirelles, ministro da Fazenda, durante evento sobre reforma da Previdência, em São Paulo
Henrique Meirelles, ministro da Fazenda, durante evento sobre reforma da Previdência, em São Paulo

DINHEIRO – A queda do dólar, a trajetória de corte dos juros e o aumento da intenção de investimento são sinais de que a economia começa a ganhar fôlego?

SOLTI – As decisões macroeconômicas mais importantes já foram tomadas e, ao que me parece, foram acertadas e estão no caminho certo, como disse anteriormente. Então, isso vai surtir efeito a partir do segundo semestre. Em 2018, acredito, teremos uma recuperação mais evidente. Obviamente, essas medidas não vão fazer o mercado crescer 30%, mas colocam a economia dentro de um avião que está prestes a levantar voo. A engrenagem da economia dependerá dos desdobramentos de fatores políticos.

DINHEIRO – Os governos Lula e Dilma foram muito voltados à indústria automobilística, com redução de IPI, programas de incentivo como o Inovar Auto, linhas de crédito do BNDES e até redução forçada das taxas de juros. Naquela época, todos celebraram as iniciativas, mas hoje criticam. Qual a sua avaliação?

SOLTI – Tem uma frase muito interessante, e que sempre gosto de citar, atribuída a Winston Churchill: “é muito fácil ser inteligente no dia seguinte”. Então, adaptando esse pensamento para o nosso contexto, acredito que cada momento é um momento e que, talvez, aquelas tenham sido as medidas apropriadas para manter a indústria girando. Não dá para ficar questionando as decisões do passado.

DINHEIRO – O que falta ser feito?

SOLTI – Qualquer um de nós que sentasse hoje na cadeira do Henrique Meirelles, sem qualquer pretensão, porque ele é brilhante, teria de fazer o mesmo que ele está fazendo: cortar gastos, aprimorar os fundamentos da economia de maneira estruturada.

DINHEIRO – A operação Lava Jato e a crise econômica estão mudando a relação entre empresas e governo?

Cliente utiliza o aplicativo do Uber como alternativa de transporte
Cliente utiliza o aplicativo do Uber como alternativa de transporte

SOLTI – Como executivo, não me envolvo em assuntos políticos. Como cidadão, acredito que nós, brasileiros, estamos vivendo um momento histórico. Até brinquei dias atrás com a minha filha, de 18 anos, quando ela me perguntou sobre tudo isso que está acontecendo com o Brasil, com esse turbilhão de notícias e de escândalos. Eu respondi a ela: filha, não sei o que te dizer hoje, mas tenho certeza de que seus filhos te perguntarão sobre esse momento que estamos vivendo hoje, da mesma forma que eu perguntava para o meu avô sobre a Revolução de 1932 e o MMDC, movimento pelo qual ele fez parte. Tenho a percepção que, daqui a alguns anos, teremos uma noção melhor de que toda essa mudança nas estruturas políticas do País foi o ponto de partida para a mudança do Brasil. E todos temos de estar preparados para essa transformação.

DINHEIRO – Como a Citroën está trabalhando sua marca, que não tem a melhor das reputações do mercado?

SOLTI – Decidimos transformar a marca Citroën, aproveitando esse momento de transição da economia. Tiramos da nossa frente aquilo que chamamos de barreira de compra. Estudamos as razões que levavam o consumidor a não comprar um carro nosso. Chegamos à conclusão que existiam quatro razões. A primeira, a ideia de que Citroën é um carro importado. Segunda, que o custo de manutenção alto. Terceiro, a disponibilidade e o preço das peças. Quarto, a desvalorização no momento da revenda. Como alguns desses conceitos eram meias-verdades, atacamos esses quatro elementos. Trabalhamos junto aos consumidores a informação de que não somos importados. Nossa fábrica fica em Porto Real (RJ). Criamos um programa de revisões a R$ 1 por dia, o mesmo que R$ 365 por ano. Criamos um sistema de reposição de peças muito ágil e eficiente. E no caso do preço das peças, decidimos estar entre as três marcas mais baratas em reposição.

DINHEIRO – Em tempos de crise, os consumidores buscam carros que desvalorizam menos, como Toyota e Honda. Como a Citroën, que carrega o estigma de carro que perde muito valor, enfrenta esse problema?

SOLTI – Apesar de ter uma excelente taxa de fidelização de mais de 50%, decidimos trabalhar forte a valorização dos nossos produtos no momento da recompra, tendo como referência a tabela Fipe. Se nossas concessionárias não valorizarem nossos carros, ninguém mais vai valorizar. Essa recompra do carro com valor pré-definido foi o primeiro passo. Destruir uma marca não leva nem seis meses. Reconstruir uma marca é trabalhamos para mais de seis anos. Então, não adianta apenas ficar dizendo que nossos produtos são bons. É preciso provar.

DINHEIRO – Os planos da Citroën no País replicam as estratégias da marca lá fora?

SOLTI – O brasileiro escolhe o carro mais pela emoção, pela moda, pelo status social. Na Europa, a decisão é mais racional. É por isso que o brasileiro troca de carro a cada dois anos e meio, em média, enquanto o europeu a cada sete anos. Aqui ainda compramos picapes que carregam uma tonelada, mas nada será carregada nela. Às vezes o cliente não tem filhos, não tem cachorro e sequer viaja muito. Mas sai de casa com R$ 100 mil no bolso para comprar uma SUV. Para o europeu, isso não faz sentido.

DINHEIRO – A Citroën tem uma participação muito pequena no mercado brasileiro, de apenas 1,3%. Isso não o incomoda?

SOLTI – Temos um plano robusto de investimento em curso. Obviamente, se estamos reestruturando toda a operação e trazendo um carro por ano até 2021, é porque queremos avançar no mercado. Então, são sinais de que não estou satisfeito com 1,3% de mercado. E posso afirmar que meus chefes também não estão satisfeitos com essa posição. Quando assumi a Citroën, recebi uma missão clara, de fazer a marca crescer. Lógico que quero mais do que dobrar ou triplicar essa fatia, mas vamos fazer isso de forma estruturada e no tempo certo.

DINHEIRO – Como a Citroën enxerga as novas gerações, que têm aderido a alternativas de mobilidade?

SOLTI – É fato que a relação de propriedade com o automóvel está mudando, mas a necessidade de transporte sempre vai existir. A maneira como ela será feita é que vai mudar. A gente está atento a todas as iniciativas de mobilidade que estão surgindo. Mundialmente, a Citroën está entrando no capital de várias startups. Temos projetos de carros elétricos e autônomos. Acredito que o compartilhamento do carro será uma realidade cada vez mais presente em nosso cotidiano.