O acesso até a comunidade de Patos, em Milagres, uma cidade de apenas 8,3 mil habitantes no interior do Estado do Maranhão, não é simples. O voo que a reportagem de DINHEIRO pegou de São Paulo, com destino à capital São Luis, decolou do aeroporto de Guarulhos às 10h40 da manhã de um domingo. Já na capital maranhense, por volta das 15 horas, a viagem seguiu de carro, com duração prevista de seis horas. Seria um tempo plausível se as estradas federais BR-135 e BR-222 não estivessem em situação precária, sem iluminação e pouca sinalização. As falhas da infraestrutura brasileira vão aparecendo à medida que a viagem segue para o interior.

A telecomunicação, por exemplo, é praticamente inexistente. Somado a tudo isso, o calor e o sol forte fazem a sensação térmica chegar a 40ºC, o que exige hidratação constante. E quando a água é um bem caro e raro? Em Patos, há apenas um ponto de distribuição de água para toda a comunidade: uma caixa d’água de cinco mil litros para atender mais de vinte famílias. Com a menor renda per capita brasileira, com uma média de R$ 405 por pessoa, o Maranhão é o segundo pior Estado do País no ranking do saneamento básico, com 83,6% das residências sem banheiro ou sanitário de uso exclusivo, segundo o IBGE, atrás apenas do Piauí, onde a falta de coleta e de tratamento de esgoto chega a 85,8%.

O problema é que essa realidade da região de Milagres é o espelho de um Brasil pobre e esquecido. Mais de 100 milhões de brasileiros não têm acesso à coleta de esgoto e mais de 35 milhões de pessoas não recebem água tratada. De 80% de residências que contam com abastecimento de água, apenas 49% são atendidas por rede coletora de esgoto. Além disso, 42,7% do esgoto gerado no País é tratado, o restante é descartado no meio ambiente. Esse descaso afeta diretamente o mercado de trabalho.

Um estudo do Instituto Trata Brasil mostra que, em 2012, 300 mil trabalhadores se afastaram de suas funções em decorrência de doenças ligadas à falta de saneamento básico, como a diarreia – quase 30% dos casos ocorreram no Nordeste. Essa precariedade aumenta os gastos públicos. Segundo a Organização Mundial da Saúde, caso questões básicas de saneamento fossem prioridade no Brasil, para cada R$ 1 investido no setor, R$ 4,30 seriam economizados com saúde pública. As péssimas condições de saneamento fazem com que especialistas questionem o País. Como uma das 10 maiores economias ocupa a 112ª posição no ranking sobre saneamento básico global, numa lista de 200 países?

Mudam vidas: o consultor Felipe Manfrini, do projeto caracol, e Bruna Coletti, gerente de marketing da Neve, transformaram a realidade de treze famílias do Maranhão (Crédito:Gabriel Reis)

Para tentar solucionar esse grave problema e universalizar a água no País, o governo federal aprovou a lei 11.445, em 2007, e iniciou o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab). A meta é que todo o território nacional seja abastecido por água potável e que 92% do esgoto seja tratado. Até 2033, seriam necessários
R$ 508 bilhões em investimentos. Mas esse projeto não tem sido cumprido. Um levantamento feito pela consultoria KPMG para a DINHEIRO mostra que, no período de 2007 a 2015, o saneamento básico recebeu apenas R$ 7,6 bilhões por ano.

Seriam necessários, pelo menos, R$ 15 bilhões. Para piorar, com a recessão, em 2015 o valor aportado foi de apenas R$ 4 bilhões. Estima-se que, por conta desse menor desembolso, o programa tenha acumulado 20 anos de atraso. “A eficiência do plano depende da participação da iniciativa privada, principalmente nesse período de ajuste de contas do governo”, diz Mauricio Endo, líder de infraestrutura da KPMG Brasil. “É preciso estimular uma maior interação de empresas privadas no setor. Só assim conseguiremos avançar no tema.”

Um levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostra que o atendimento do saneamento básico de 83,3% da população vem da rede pública. De acordo com a CNI, municípios com prestadores privados têm, em média, notas 10% maiores quando comparados com os que contam com o serviço público. Outro ponto é a diminuição de perdas de água: a média de perdas na distribuição no Brasil chegou a cerca de 37%. Isso representou uma redução de 35% no faturamento das empresas do setor em 2015. “O saneamento no Brasil sempre foi muito dependente de recursos da União”, diz Ilana Ferreira, especialista em Políticas e Indústria da CNI. “E esses recursos já não estão mais disponíveis.”

Casos internacionais, como o da privatização do setor no Chile, mostram o salto na qualidade do serviço. Cerca de 85% da população chilena mora em áreas urbanas. As empresas privadas são responsáveis pela prestação de serviço de saneamento de 94% desses locais. No país, o processo de privatização foi iniciado no final da década de 1970. Desde então, a cobertura do serviço de água evoluiu de 78% para 98%, enquanto o esgotamento sanitário, de 52% para 82%. No Brasil, uma das primeiras cidades a aderir à iniciativa privada, em 1995, foi Limeira, no interior de São Paulo.

Em 2009, o município fechou um contrato de 30 anos com a Odebrecht Ambiental (vendida para a canadense Brookfield, em abril deste ano). A evolução do saneamento no local é impressionante: os quase 300 mil habitantes contam com a universalização do abastecimento de água e de tratamento de esgoto. A cidade também registra um dos menores índices de desperdício na distribuição de água. A média é de 14% de perdas, ante quase 40% no Estado. Por aqui, o objetivo é que a participação do setor privado ocorra por meio de parcerias público-privada (PPPs). A empresa entraria com o investimento e os modelos de gestão.

Dignidade: o sanitário seco, conhecido como Bason, foi adotado na comunidade maranhense de Patos, que tem acesso restrito a água (Crédito:Gabriel Reis)

Ao fim do contrato, o Estado reassume o serviço. No caso chileno, por exemplo, o governo mantém pelo menos 35% das ações das empresas regionais, com o poder de veto de algumas decisões. Além disso, o país estruturou um marco regulatório e dividiu a responsabilidade do setor com a iniciativa privada. Para aumentar a presença de companhias privadas no setor, o governo federal e o BNDES têm feito algumas ações. No caso do BNDES, já foi aprovado um programa para contratar estudos e atrair a participação privada em 17 Estados.

A iniciativa pretende aumentar o número de parcerias público-privadas em cidades menores. Atualmente, 322 municípios, de um total de 5.570 no País, são atendidos por concessionárias privadas. Há, também, o processo do governo federal em revisar a Lei de Saneamento para garantir o apetite de grupos nacionais e estrangeiros. O objetivo é aumentar a presença privada dos atuais 6% para 30%, em aproximadamente 20 anos. “Um dos graves erros na condução dos projetos de saneamento básico é a falta de planejamento de longo prazo”, diz Édison Carlos, presidente executivo do Instituto Trata Brasil. “Por isso, é impensável a ausência da iniciativa privada no setor.”

Na comunidade maranhense de Patos, o banheiro só se tornou uma realidade para treze famílias após uma iniciativa da multinacional americana Kimberly Clark, que deu início, no ano passado, ao projeto “Banheiros Mudam Vidas”, liderado pela marca de papel higiênico Neve. “Hoje, as pessoas estão mais conscientes do impacto de suas escolhas, buscando formas de contribuir para um mundo melhor”, diz Gustavo Schmidt, CEO da empresa. Após traçar um panorama do saneamento básico no País, a empresa recrutou oito jovens voluntários para desenvolver um sistema de banheiros na região. A exigência era que ele se adequasse à realidade dos moradores.

No dia em que a reportagem de DINHEIRO esteve na vila, os moradores se queixavam da ausência de água nos últimos cinco dias. A prefeitura estava abastecendo a caixa d’água com um caminhão pipa. Por isso, a opção escolhida foi o sanitário seco, conhecido como Bason (a serragem faz o papel da descarga). Ele mudou a dinâmica de 13 famílias. As demais aguardam um posicionamento público para terem acesso ao “benefício”. Para a Kimberly Clark realizar a obra, o morador tem de ser proprietário do terreno ou ter autorização para realizar uma modificação no local.

Algumas famílias, como a de Sebastião de Jesus, de 34 anos, aguardam a liberação. Ele, a esposa e os quatro filhos (todos com menos de 10 anos) continuam utilizando o mato como banheiro. “Nós estamos acostumados. Só é chato quando encontramos algum vizinho usando o mesmo espaço que nós”, diz Jesus. “Ou quando está chovendo e temos que sair com as crianças no escuro.” As condições em que a família de Jesus vivem parecem cenas do século XIX, principalmente para moradores de áreas urbanas de grandes metrópoles. Porém, essa ainda é a realidade de um País que será a 5ª maior economia do mundo até 2050, segundo projeções da consultoria PwC, mas corre o risco de chegar lá ainda lutando pelas condições básicas de saneamento.