Na Modernidade Líquida, esse tempo em que tudo se transforma como se fosse água ao sabor do vento, as tradições estão desmoronando. Não é diferente na indústria automobilística. A próxima tradição a ruir deve ser a presença da General Motors como fabricante na Europa. Desde 1929, a GM tem um braço europeu chamado Opel. E uma extensão desse braço na Grã-Bretanha chamada Vauxhall. Mas parece que Detroit decidiu que não dá mais para continuar perdendo dinheiro no Velho Continente. “America First” é o lema do presidente Donald Trump. E a GM vai na onda.

Na semana passada explodiu a notícia de que a GM está negociando com o Grupo PSA (que detém as marcas Peugeot, Citroën e DS) a venda da Opel e da Vauxhall. O negócio deve ser concretizado a qualquer momento. Para a GM, será um alívio se livrar de uma operação que resultou em 1,070 bilhão de prejuízo só nos últimos dois anos. Quem quer saber de manter uma tradição nesse cenário? Para a PSA Peugeot Citroën, a adição da Opel/Vauxhall a posicionaria em segundo lugar no mercado europeu, com 16,3% de participação nas vendas. Assim, ficaria atrás somente do Grupo Volkswagen, que encerrou 2016 com 24,1%.

Mas o que de fato está por trás disso tudo? Para a GM, os motivos são claros. Afinal, ela não tira um centavo da Opel há 16 anos! Mas o que a PSA ganharia adicionando essas marcas, além de maior participação no mercado europeu? Para entender esse jogo de xadrez da indústria automobilística, compartilho trechos de um artigo do consultor português Luis Pimenta, que, para além de ser meu amigo e ter o mesmo prenome de seu conterrâneo Camões, publicou excelente análise em sua coluna no site Motor24, de Portugal.

Segundo Pimenta, enquanto a PSA atua na Europa, na América Latina e na Ásia (tendo a China como seu maior mercado), a Opel é exclusivamente europeia. Mais: muitos de seus produtos se sobrepõem. Mas essa aquisição levará a PSA a mudar de patamar de produção, passando de 3,1 para 4,3 milhões de carros/ano.

“E aqui chegamos ao ponto essencial: a dimensão enquanto factor de sucesso. A indústria automóvel é a mais concentrada de todas e, uma vez mais, os dados são claros neste aspecto. Os cinco maiores players produzem quase metade (49%) dos carros do planeta, num domínio que estende pelo lado geográfico: as marcas são originárias de apenas 13 países do mundo e os 15 mais desenvolvidos concentram 88% da produção automóvel. Das nações do G20, só a Arábia Saudita não tem qualquer fábrica de automóveis.

É este o pano de fundo de operações como aquela que poderá acontecer entre a PSA e a Opel. Uma luta de gigantes em que o tamanho conta. E muito.

E conta, especialmente, porque existe na indústria automóvel um sector que esconde as verdadeiras “eminências pardas”, os autênticos “donos disto tudo”: os fornecedores. Conseguir bons preços perante eles é determinante para a margem de lucro em cada carro produzido. Ora, quanto maior a dimensão, maior o peso negocial. E melhor o preço conquistado.”

Segundo Luis Pimenta, desde 2015 os fornecedores já representam mais de 80% do valor acrescentado em cada carro. Ele observa que projeto, design e engenharia ainda nascem no berço da marca, assim como os motores, “mas quase todo o resto é fabricado por fornecedores externos, numa tendência que foi crescendo com a globalização”.

Como resultado, existem hoje cerca de 20 mega-fornecedores com um alcance inimaginável há uma ou duas décadas. O consultor português afirma que só a Bosch (o maior deles) faturou mais de 73 bilhões de euros no ano passado, bem mais que os 54,7 bilhões de euros do Grupo PSA. Esses mesmos fornecedores tornaram-se parte ativa no desenvolvimento de produtos (tanto que a Bosch investe 9,9% de seu faturamento em Pesquisa & Desenvolvimento, contra 3,5% da GM, por exemplo).

Com a enorme importância que adquiriram no setor, os fornecedores das montadoras atendem diversas marcas concorrentes e aumentaram seu poder de negociação perante os fabricantes de automóveis. Que, por sua vez, tornaram-se reféns de poucas empresas (a recente paralisação da produção da Volkswagen do Brasil por causa de um fornecedor de bancos é um exemplo).

Devido a isso tudo, o também português Carlos Tavares, CEO do Grupo PSA, chegou à conclusão de que é preciso ter maior dimensão e reforçar a economia de escala, porque cada centavo deve ser considerado hoje em dia. Finalmente, se o negócio for mesmo concretizado, quem sabe um dia, no futuro, poderemos ter no Brasil não um Chevrolet Corsa ou um Chevrolet Astra, como já tivemos, mas sim um Peugeot Corsa ou um Peugeot Astra. Seria curioso. E mais uma tradição a desmoronar nesses tempos líquidos.

Leia aqui o artigo completo publicado pelo site Motor24