Num exercício para dimensionar a profundidade da crise econômica na Venezuela, um apaixonado por jogos publicou, no Twitter, uma constatação preocupante sobre a situação cambial do seu país. No dia 14 de julho, ele registrou que um dólar custava 8.493 bolívares no mercado negro, enquanto um dólar valia 8.385 unidades da moeda virtual do jogo de computador “World of Warcraft”, em que pessoas assumem o controle de personagens mitológicos para realizar expedições e missões com outros participantes.

Na quarta-feira 1º, ao olhar novamente, constatou que o bolívar havia sofrido uma desvalorização de 43,6% em relação ao dólar, sendo cotado a 12.197 bolívares, enquanto a divisa fictícia valorizou-se 22,7%, vendida a 6.482 por dólar. Ou seja, enquanto uma mera moeda virtual ganhava força, a outra, de um país com 205 anos de história derretia, apesar de o governo emissor ser detentor da maior reserva de petróleo do mundo. A irreverente comparação expressa a situação caótica da economia venezuelana, que enfrenta profunda recessão, hiperinflação e escassez de alimentos.

A tendência é de que esse quadro piore daqui para frente, com o acirramento das tensões provocadas pelo estabelecimento de uma Assembleia Constituinte, numa guinada autoritária vista como tentativa de sufocar a democracia no país. A constituinte foi convocada no dia 1º de maio pelo presidente Nicolas Maduro sob a justificativa de que é “preciso reformar o Estado e redigir uma nova Constituição”. A oposição trabalhou para boicotar o pleito, denunciando a tentativa do governo de concentrar ainda mais poderes e enfraquecer o Legislativo, controlado por parlamentares contrários desde 2016.

A proposta entregaria a maior parte dos 500 assentos à base do chavismo, que poderia fazer as mudanças que quisesse. O governo anunciou que 8 milhões de venezuelanos, 41,5% do total de eleitores, votaram no pleito de domingo 30. Os números, porém, são contestados pela Smartmatic, empresa responsável pelo processo de votação, que considerou inflada a estimativa de participação. No dia do sufrágio, ao menos dez pessoas foram mortas, incluindo dois adolescentes, de 13 e 17 anos. Desde abril, o país tem protestos quase diários contra o governo, com, pelo menos, 121 pessoas mortes desde então.

Endurecendo o regime: Maduro comemora vitória na eleição da Assembleia Constituinte (esq.). Delta Air Lines anuncia o fim das operações na Venezuela (dir.) (Crédito:AFP Photo / Ronaldo Schemidt e AFP Photo / Leo Ramirez)

O pleito conturbado foi apenas mais um capítulo da espiral populista em que a Venezuela mergulhou nas últimas duas décadas, com a adoção de movimentos de concentração do poder em nome do chamado “socialismo bolivariano”, implementado por Hugo Chávez e continuado por Maduro. “Podemos dizer que a constituinte levou a uma concentração ainda maior de poder”, diz Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM SP. Se, no começo, o chavismo tinha respaldo da população graças ao repasse dos ganhos obtidos com a venda do petróleo, hoje, a ideologia passa por forte rejeição com a queda das cotações.

Combinado com a falta de diversificação e o excesso de intervenção estatal, o país passou a ver contrações seguidas do PIB e a inflação disparar para acima de 100% (ver quadro ao final da reportagem). Além de produzir caos social, as medidas afastaram investimentos estrangeiros e acentuaram a crise. Em meio aos problemas recentes, a companhia aérea Delta anunciou que deixará de operar rotas na Venezuela em 17 de setembro. A Avianca também informou que encerrará seus serviços na Venezuela. Elas seguem o exemplo de outras sete companhias aéreas, além de General Motors, Ford e Pepsi.

A situação também está prejudicando as exportações brasileiras à Venezuela, que chegou a ser, no passado, o sétimo principal destino de produtos nacionais ao exterior – hoje ocupa a 52ª posição. De janeiro a julho, as vendas totalizaram US$ 282,3 milhões, queda de 57% em relação ao mesmo período de 2016. “Não há previsibilidade na política econômica”, afirma Daniel Sousa, professor de economia do Ibmec/RJ. “Com isso, vemos a saída de investimentos.” A comunidade internacional começou a reagir aos primeiros sinais de endurecimento do regime venezuelano. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil disse que a constituinte “confirma a ruptura da ordem constitucional”.

Na quita-feira 3, o presidente da Argentina, Mauricio Macri, disse que a Venezuela deveria ser suspensa “definitivamente do Mercosul”, a primeira declaração mais incisiva de um membro do grupo sobre o ocorrido no país. Os chanceleres do bloco marcaram uma reunião para o sábado 5, no Brasil, para decidir se suspendem Caracas do bloco. Os Estados Unidos aplicaram sanções contra Maduro e aliados, sem atingir o setor de petróleo, considerado o coração da economia venezuelana. “Se os Estados Unidos decidissem sancionar produtos petrolíferos, a economia venezuelana entraria em colapso em questão de meses”, afirma Reggie Thompson, analista de América Latina da consultoria americana Stratfor.

Segundo ele, medidas do tipo podem aumentar a imigração a outros países, um tema de alerta principalmente para o Brasil. O número de cidadãos venezuelanos que entraram no País por Roraima subiu de 608 em janeiro para 1.119 em julho. Com a economia fragilizada e o baixo apoio interno, a expectativa é que Maduro utilize ainda mais as forças de segurança para garantir sua permanência no poder. O primeiro sinal disso ocorreu 24 horas após a eleição da constituinte, com a prisão dos principais nomes da oposição, Leopoldo López e Antonio Ledezma. Enquanto Maduro estiver no poder, a democracia permanecerá sendo sufocada na Venezuela, um tema de alta tensão no quintal do Brasil.