Um raramente engravatado Abilio Diniz, conselheiro e um dos maiores investidores do Carrefour, definiu, em poucas palavras, o que estava pensando na manhã da quinta-feira 20, na cerimônia de abertura de capital (Initial Public Offering, ou IPO) da rede de varejo no Brasil, na B3. “Apesar dos dias tensos, tivemos um final feliz”, disse o empresário, ao discursar. “Foi fácil? Não, não foi fácil. Mas nós precisamos acreditar mais no País.” Diniz tinha razão para comemorar.

Sua empresa de participações, a Península, reduziu sua fatia no capital da rede varejista de 12% para cerca de 5%, por meio da venda de 56,8 milhões de ações, segundo o prospecto arquivado na Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Cada ação foi vendida por R$ 15, piso da faixa de preço definida para a operação, e Diniz embolsou R$ 852 milhões. “Espero que o Carrefour puxe a fila de novas aberturas de capital ainda neste ano”, disse ele. Uma das 30 maiores empresas do Brasil, segundo o ranking AS MELHORES DA DINHEIRO, a rede captou R$ 5,12 bilhões. Foi o maior IPO desde abril de 2013, quando a BB Seguridade, ligada ao Banco do Brasil, captou R$ 11,4 bilhões.

Diniz tem razão em esperar novas celebrações. Neste ano, incluindo a operação da quinta-feira, dez empresas captaram R$ 15,5 bilhões. Três delas estrearam no pregão captando R$ 3,5 bilhões: a locadora de automóveis Movida, a rede de laboratórios Hermes Pardini e a companhia aérea Azul. Na fila, pelo menos mais quatro candidatos. As empresas de energia Neoenergia e Ômega, a distribuidora de medicamentos Biotoscana e o estatal Instituto de Resseguros do Brasil (IRB). Essas operações podem captar mais R$ 9 bilhões, o que movimentaria R$ 25 bilhões neste ano.

Seria o segundo melhor resultado anual para IPOs, perdendo apenas para os R$ 55,6 bilhões de 2007. Há outros nomes de peso na lista, como o da BR Distribuidora, ainda sem modelo definido. “A queda da taxa de juros e a perspectiva de uma recuperação da economia, ainda que leve, animam os investidores”, avalia Pedro Paulo Silveira, economista-chefe da corretora Nova Futura. A leitura dos profissionais do mercado é que a eleição presidencial do ano que vem deverá bloquear o caminho para novas emissões no segundo semestre.

Assim, quem quer acessar o mercado está preferindo fazer isso agora. Porém, se quiserem tocar o sino, os empresários terão de se conformar em receber menos dinheiro. Pelo menos duas empresas desistiram do IPO: a operadora de planos de saúde Notredame Intermédica e a prestadora de serviços de tecnologia Tivit. O que os investidores queriam pagar ficava longe demais da avaliação considerada justa pelas empresas. “No caso do Carrefour, a venda pelo preço mínimo deve ser comemorada com champagne”, diz um banqueiro. Algo que os executivos presentes não se furtaram a fazer.

Novas formas: a expansão das chamadas lojas de proximidade, mais voltadas às compras de conveniência, é uma das estratégias que devem ser aceleradas pelo Carrefour após o IPO. No País, a rede possui 77 unidades nesse formato, com a bandeira Express (Crédito:Renato Suzuki)

O IPO coincide com outro momento importante do grupo, que acaba de anunciar Alexandre Bompard como novo CEO global. Ex-presidente da também francesa Fnac Darty, o executivo substitui Georges Plassat, que estava à frente da operação desde 2012. No período, a companhia enfrentou desafios como a desaceleração das vendas e a perda de participação em seus mercados domésticos, além da necessidade de impulsionar formatos alternativos aos hipermercados. “O Carrefour vive um momento de transformação”, disse Diniz, ao saudar a chegada de Bompard. “Que ele traga ambição e agressividade para colocar o Carrefour mundial no patamar que esperamos.”

Nesse novo contexto, a perspectiva é de que o Brasil seja um dos protagonistas. Com cerca de 16% do faturamento global, o País é o segundo maior mercado dos franceses, atrás apenas da França. O grupo enfrentou um período turbulento por aqui. Em 2010, a empresa foi sacudida pela descoberta de fraudes. Manobras contábeis para inflar os números, manipulando dados de estoques das lojas e de bonificações recebidas dos fornecedores, geraram um rombo de R$ 1,2 bilhão. Após descobrir a fraude, a matriz substituiu o CEO, o francês Jean Marc Pueyo, pelo brasileiro Luiz Fazzio. Pueyo e outros ex-executivos ainda enfrentam processos que tramitam na Justiça de São Paulo.

Nos três anos seguintes, as operações brasileiras foram reestruturadas. Diretores foram demitidos, lojas foram fechadas, e houve uma agressiva política de corte de custos. A dieta custou a perda da liderança do mercado brasileiro para o Grupo Pão de Açúcar (GPA) naquele mesmo ano. Diniz, vale lembrar, perdeu o controle do GPA para o francês Casino, maior rival do Carrefour. No fim de 2013, nova troca no comando. O novo CEO do Carrefour, o francês Charles Desmartis, recebeu uma operação redonda.
A liderança no varejo alimentar seria recuperada em 2014, e mantida desde então. Em 2016, a subsidiária faturou R$ 47,5 bilhões, uma alta de 14,4% sobre 2015.

Mesmo líder, o grupo não terá um caminho suave pela frente. Sua posição vem sendo ameaçada pelo acirramento da concorrência, em especial a do arquirrival Pão de Açúcar. Daí a importância do IPO. Os recursos levantados são cruciais para a companhia manter-se no topo do ranking. Em relatório, a agência de classificação de risco Fitch destacou que a abertura de capital diversificará ainda mais as fontes de financiamento do Carrefour no Brasil, e que a operação brasileira deve receberá uma fatia crescente dos investimentos do grupo nos próximos anos. “O IPO também é um meio para aumentar a visibilidade para os investidores locais”, escreveu a agência.

A Fitch acrescentou que o dinheiro dará flexibilidade financeira para a empresa “executar planos de expansão em um mercado que ainda não está maduro.” No prospecto da abertura de capital, o Carrefour informou que 85% dos recursos líquidos captados vão quitar empréstimos com a matriz francesa. Os 15% restantes serão reservados para capital de giro e para financiar a expansão em formatos de “rápido crescimento”. A estimativa de analistas é que o segundo item vai receber R$ 580 milhões. “Mais do que caixa, o importante é que o grupo hoje tem modelos de negócios que rodam bem e têm alto potencial de crescimento”, diz Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC).

O atacarejo é uma dessas frentes. No segmento, listado como uma das prioridades no prospecto de lançamento das ações, o Carrefour atua sob a bandeira Atacadão, com 160 lojas, que respondem por cerca de 64% da sua receita local. Outro nome relevante nesse setor é o Assaí, do GPA, que possui 106 unidades no País. Os analistas entendem, no entanto, que ainda há muito espaço para as duas marcas crescerem nesse modelo, que vem ocupando o espaço de hipermercados e supermercados. “O atacarejo ganhou expressividade com a mudança nos hábitos de consumo do brasileiro, preocupado com o orçamento apertado pelo endurecimento da crise” diz Marília Borges, analista da Euromonitor International.

“Mesmo que aconteça uma retomada na economia, muitos desses consumidores seguirão priorizando esse formato”, afirma Jiro Ogasawara, líder de fusões e aquisições da AGR Consultores. Enquanto o atacarejo se consolida como uma opção mais acessível para as chamadas “compras mensais”, outro conceito que ganha corpo no setor é a loja de proximidade, tentando atender o consumidor que não tem carro ou não quer perder tempo no trânsito com as chamadas compras de reposição ou de conveniência. “Esse é um mercado ainda inexplorado no Brasil”, diz Eduardo Terra, do SBVC. No Brasil, o Carrefour opera 77 lojas Express.

Além de projetar a aceleração da expansão dessa bandeira, Terra ressalta que a companhia tem a oportunidade de importar outras variações desse modelo, já adotadas na França, como o Carrefour City, que possui um posicionamento mais premium. A revitalização dos pontos-de-venda é mais um componente relevante na estratégia do Carrefour. Com o objetivo de aumentar a rentabilidade em suas unidades, desde 2013, a empresa repaginou 64 hipermercados e 13 supermercados. Em alguns casos, como a unidade nos Jardins, região nobre de São Paulo, o hipermercado foi transformado em um shopping center completo. “O hipermercado tradicional está ultrapassado”, diz Ogasawara.

O plano é cobrir toda a rede até o fim de 2019. Entre outros fatores, os projetos passam pela renovação dos layouts e pela introdução de novas categorias de produtos. Para Ogasawara, algumas dessas iniciativas sinalizam a aposta em unidades multiuso, com uma redução do espaço destinado aos hipermercados e a exploração de serviços, como praças de alimentação e farmácias. Ogasawara observa ainda que o Carrefour é proprietário de 73% dos imóveis usados em sua operação. “Eles têm a alternativa de usar parte desses ativos para gerar caixa, caso o montante captado no IPO não seja suficiente para financiar suas estratégias de crescimento.”

Outro campo que deve ganhar peso é o e-commerce. Após uma primeira incursão, em 2010, descontinuada dois anos depois, o Carrefour relançou sua plataforma de comércio eletrônico em julho do ano passado. No site, os consumidores têm acesso a categorias como eletrônicos, casa e decoração, além de um marketplace com mais de vinte parceiros. A companhia projeta oferecer até 150 mil itens nesse canal até o fim do ano. A inclusão de produtos alimentares é outro plano previsto para o período. O grupo sofreu críticas por ter entrado de maneira tardia no segmento, quando comparado a concorrentes como o GPA e o Walmart.

Marcos Gouvêa, diretor-geral da consultoria GS& Gouvêa de Souza, faz um contraponto a essa visão. “O Carrefour tem a oportunidade de criar o canal do zero, integrado à operação física, enquanto rivais como o GPA estão tendo que passar por esse processo com o carro andando”, afirma. No entanto, ele ressalta outro desafio para o Carrefour, agora sob os holofotes do mercado de capitais. “Uma coisa é ser uma subsidiária de destaque. Outra é ter todos os refletores em cima, a cada trimestre. Eles terão uma boa dose de pressão adicional. Para o bem ou para o mal.”