Após a Perestroika, processo de dissolução da União Soviética que acabou com o regime comunista na Rússia, uma piada sobre Karl Marx, o pai do socialismo, foi difundida nas chamadas conversas de cozinha pelo país – os russos têm o costume de se reunir nesse cômodo da casa, uma herança dos tempos das residências comunitárias do antigo regime. Dizia-se que um comunista é aquele que leu Marx. Já o anticomunista, o que entendeu. O povo russo tem um senso de humor apurado.

Assim como os brasileiros, eles tendem a usar a ironia como uma forma de amenizar os tempos difíceis e passar a sensação de normalidade em épocas de crise, muito comuns em ambos os países. Foi esse um dos principais propósitos do presidente Michel Temer ao visitar a Rússia na semana passada: o de mostrar que tudo corre bem. O clima da visita foi amistoso, com tempo para brincadeiras sobre futebol, mas aquém do esperado na pauta concreta da parceria bilateral. A sombra de uma possível queda de Temer pairou sobre a visita.

Longe da crise: visita de Temer a Putin terminou com acordos tímidos e não conseguiu arrefecer a tensão política no Brasil (Crédito:Beto Barata/PR)

Temas importantes, como um acordo mais efetivo no setor de energia nuclear, considerado fundamental pelos russos, foram tratados de forma superficial. E uma inesperada derrota política do governo brasileiro no Senado (leia reportagem aqui) jogou por terra as chances de a crise nacional ser esquecida por alguns dias. No encontro entre o presidente russo, Vladmir Putin, e Temer foram assinados acordos de cooperação bilaterais que incluem a desburocratização dos processos de exportação entre os países e um programa de estímulos a investimentos mútuos. “Renovamos a parceria estratégica”, disse Temer.

Horas antes, sua agenda oficial revelara uma gafe ao apontar a viagem para “República Socialista Federativa Soviética da Rússia”, nome da antiga potência soviética. No ano passado, o comércio entre os dois países movimentou US$ 4,3 bilhões, uma queda de mais de 40% em relação ao ano anterior, volume considerado muito baixo para o potencial das duas economias. O Brasil exporta, principalmente, carne e compra fertilizantes do aliado. Mas há outros interesses nessa relação. “Estamos estudando a possibilidade de fazermos lançamentos conjuntos de foguetes no Brasil”, afirmou Putin, referindo-se à base de Alcântara, no Maranhão.

Em entrevista à agência de notícias russa Tass, o presidente brasileiro também disse que o País negocia a compra de 12 helicópteros militares da Rússia. Mas, apesar da boa vontade de ambos os lados, nenhum ato concreto foi assinado. O primeiro encontro entre Putin e Temer se deu na terça-feira à noite, no famoso Teatro Bolshoi. O brasileiro foi convidado para assistir à cerimônia de encerramento de um concurso de balé. Para sua chegada, as autoridades russas fecharam uma via lateral ao prédio, que também dá acesso a uma casa de concertos.

Defensiva: pronunciamentos de Temer fora do País tentaram mostrar melhora na economia e apoio do Congresso (Crédito:Beto Barata/PR)

Isso irritou algumas pessoas, inclusive um grupo de brasileiros, que estava atrasado para o espetáculo. De forma geral, a imprensa local deu pouca atenção à visita do brasileiro. No dia seguinte, Temer depositou uma coroa de flores no túmulo do soldado desconhecido, monumento que presta homenagem aos soldados mortos na Segunda Guerra Mundial. Durante a cerimônia, ouviram-se alguns protestos de cidadãos brasileiros, porém discretos.

ENERGIA NUCLEAR As economias de Rússia e Brasil possuem diversas similaridades. Ambos os países estão saindo de uma recessão, dependem intensamente das commodities e têm na corrupção um dos maiores desafios para o desenvolvimento. No campo político, por outro lado, as diferenças são gritantes. Enquanto Temer sofre de uma baixíssima popularidade (9% de aprovação, segundo as pesquisas mais recentes), Putin é quase uma unanimidade. Há 17 anos no poder, ele é aprovado por 80% da população e deve vencer as eleições novamente, no próximo ano. As consequências disso para a relação bilateral ficam claras quando se olha para o setor de energia nuclear, área em que os russos possuem grandes interesses exportação.

O país é dono das maiores reservas de urânio do mundo e vem incentivando, inclusive com financiamentos, a construção de usinas nucleares por todo o planeta. Até o final do ano passado, a Rússia contabilizava ao menos 20 acordos para a exportação de reatores, que totalizavam mais de US$ 130 bilhões em pedidos, segundo dados da World Nuclear Association, entidade internacional que representa a indústria. A visita de Temer coincidiu com a realização de um congresso de energia nuclear, o Atomexpo, patrocinado pela estatal russa Rosaton, que está à frente do projeto expansionista do país no mercado atômico.

Agenda de formalidades: Temer e comitiva em encontro com parlamentares russos, na terça-feira 20. À direita, o presidente com o ministro de negócios estrangeiros da Noruega, Borge Brende, em visita à capital Oslo (Crédito:Beto Barata/PR)

O tema nuclear foi tratado pelos dois presidentes na visita, mas a expectativa de assinatura de um memorando de entendimento entre a Rosaton e o Ministério de Minas e Energia acabou adiada. Informalmente, executivos do setor dizem que a instabilidade política no Brasil impede que sejam dados passos mais definitivos nessa questão. A intenção da Rússia é não só participar da finalização da usina de Angra 3, cujas obras estão paradas por suspeitas na Lava Jato, mas também da instalação de novas unidades, que demorariam cerca de dez anos para sair do papel.

A percepção no setor é de que Putin considera imprudente assinar documentos com um governo que pode cair. Ao mesmo tempo, a indústria nuclear brasileira cobra uma decisão em direção ao futuro. “É preciso que seja definida uma política de Estado”, afirma Celso Cunha, presidente da Associação Brasileira para Desenvolvimento de Atividades Nucleares. O objetivo dos russos é claro: aumentar sua influência econômica global, aproveitando o vácuo deixado pelos Estados Unidos e a parceria estratégica com os aliados dos Brics (Brasil, Índia e China).

De Moscou, Temer seguiu para a Noruega, país que ocupa a 45a posição entre os principais parceiros do Brasil, e foi surpreendido com o anúncio de que o país reduzirá em 50% as contribuições ao Fundo Amazônia. Os aportes anuais cairão de uma média de R$ 400 milhões para R$ 200 milhões. O motivo foi o aumento do desmatamento na região, num reconhecimento público por parte a Noruega de que o governo Temer derrapou na Amazônia. O que ficou claro, nas duas visitas oficiais, é que sem um governo estável o diálogo externo ficará no mesmo patamar das anedotas sobre o comunismo: o das conversas de cozinha.