O comportamento das ações da Eletrobras foi atípico no pregão da B3 de terça-feira 22. O papel da companhia registrou valorização de 49,3%, num desempenho recorde poucas vezes visto num único dia na bolsa de valores, para empresas desse porte. O valor de mercado dela saltou de R$ 20,2 bilhões para R$ 29,3 bilhões. A última valorização meteórica de uma companhia havia acontecido em fevereiro de 2016, quando a ação da Petrobras ganhou 16,1% em razão de uma forte alta no preço do barril do petróleo no mercado internacional. O motivo que deu força à maior empresa de energia da América Latina foi a decisão do governo de privatizá-la.

Para aumentar a arrecadação e diminuir o déficit fiscal, recalculado para R$ 159 bilhões para os anos de 2017 e 2018, um novo pacote do Programa de Parcerias e Investimentos (PPI) foi apresentado para a iniciativa privada, com 57 ativos, entre eles aeroportos, rodovias e a Casa da Moeda (ver reportagem aqui). Ao todo, o poder público espera uma receita total de R$ 44 bilhões. “A agenda de privatização estabelecida pelo governo, mesmo sendo motivada pelo equilíbrio fiscal, moderniza o País”, diz Luiz Carlos Trabuco, presidente do Bradesco. “Essa programação é extremamente positiva. O investimento privado, que precisa de taxa de retorno, vem para melhorar a infraestrutura.”

A Eletrobras é o bem mais valioso e o que mais choque deve provocar. “Teremos uma Eletrobras mais eficiente e uma tarifa mais competitiva”, diz o presidente Wilson Ferreira Jr. (leia a entrevista ao final da reportagem). Antes de privatizar, o governo terá de conseguir a aprovação de órgãos públicos e do Poder Legislativo. Não será uma conquista simples, muito menos fácil. Será preciso definir, por exemplo, como serão desmembradas a Usina Hidrelétrica de Itaipu, que é binacional, com o governo do Paraguai, e a Eletronuclear, conforme determinação constitucional de que só o poder público pode mexer com energia nuclear.

O modelo dessa privatização será apresentado nos próximos meses. Pelo que se sabe até aqui, a decisão do governo foi tomada num contexto de necessidade de reforço de caixa para as combalidas contas públicas, mas o programa não se restringe a essa questão. O modelo que será adotado é o de uma diminuição da participação da União, que sozinha detém 41% do capital da Eletrobras. Ao deixar de ser sócio-majoritário, o Estado eleva o nível de governança corporativa. O desejo, porém, é manter uma participação relevante. Por esse motivo, dificilmente a venda alcançará os cálculos iniciais de R$ 20 bilhões a R$ 30 bilhões.

As estimativas consideradas mais realistas são de valores próximos a R$ 10 bilhões. Listada no Nível 1 de governança corporativa da B3, a Eletrobras precisará propor aos minoritários a conversão de papéis Preferenciais (PN) para Ordinários (ON) para alcançar o Novo Mercado. O movimento deve repetir o que a Vale está promovendo neste momento com as suas ações. “Será interessante a Eletrobras contratar um comitê independente para calcular essa relação de troca”, diz Sandra Guerra, sócia-diretora da Better Governance. “Vai trazer credibilidade e conforto para o mercado e para os acionistas.”

O governo quer fazer da estatal do setor elétrico uma companhia com capital pulverizado, sem um controlador majoritário. É a chamada corporation, nos mesmos moldes de companhias como a varejista Renner. Uma oferta pública de ações vai atrair todo tipo de investidor, do financeiro até empresas concorrentes. Os grupos chineses, que estão investindo pesado no setor elétrico e na infraestrutura nacional, devem ter uma participação relevante. Para garantir que ninguém seja controlador, será imposto um limite de votos nos conselhos para os acionistas.

Alinhados: O ministro de Minas e Energia, Fernando Bezerra Coelho Filho (à dir.), atendeu o desejo do presidente da Eletrobras, Wilson Ferreira Jr., que pedia a privatização (Crédito:Pedro Ladeira/Folhapress)

O modelo é muito semelhante ao da portuguesa EDP, a companhia estatal de energia que, em 1997, realizou sua primeira oferta pública de ações. Nos anos seguintes, o governo português reduziu constantemente sua participação até realizar sua última venda importante em dezembro de 2011, para a chinesa Three Gorges. Hoje, eles são os maiores acionistas individuais, com 21,3% de participação. É provável que o governo brasileiro siga esse caminho, com pequenas diferenças. Como fez com a Embraer, será estabelecida uma golden share, uma ação especial que garante ao Estado o poder de decisões em assuntos estratégicos.

A fabricante brasileira de aviões, por exemplo, não pode negociar com nenhum país inimigo nacional ou de aliados. Na Eletrobras, acontecerá o mesmo, mas em defesa da garantia de oferta de energia para o mercado. “A nossa expectativa é que, com os ganhos de eficiência que a empresa terá, vamos ter no futuro um custo para o consumidor final mais barato”, afirmou Fernando Bezerra Coelho Filho, ministro de Minas e Energia. Com 31% do total de geração de energia e 47% do total nacional de transmissão, o papel da Eletrobras no sistema elétrico é semelhante ao de qualquer outra empresa privada. Ela não tem relação com a regulação, que cabe à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), e o planejamento, que é realizado pela Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE).

Até a gestão dos fundos setoriais foram transferidos, no ano passado, para a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Mas, até agora, a Eletrobras convivia com um problema inexistente para seus concorrentes: todos os ativos ruins que iam a leilão tinham de ser obrigatoriamente adquiridos por ela. “A privatização vai recuperar a capacidade de investimento e permitir que a Eletrobras entre em bons projetos”, diz Victor Kodja, presidente da BBCE, uma plataforma eletrônica de compra e venda de energia. “Até agora, ela era uma executora ruim. É só ver as linhas de transmissão que estão atrasadas ou pendentes de construção.”

Sem negócio: como o Estado é o único autorizado a mexer com energia nuclear, a Eletronuclear vai continuar como uma estatal (Crédito:Divulgação)

Um dos principais defensores desse movimento de privatização era Wilson Ferreira Jr., presidente da Eletrobras. Todos os meses, ao se reunir com o ministro Coelho Filho para falar sobre as pendências e as dificuldades da companhia, o executivo fazia apelos para retirar as amarras de ser uma estatal. As limitações, argumentava Ferreira Jr., que assumiu a empresa no fim de julho de 2016, iam da necessidade de o governo aportar capital para investimentos até o cumprimento da lei para simples aquisições de material de escritório.

A visão era a de que a companhia perdia eficiência frente aos competidores estrangeiros. “A Eletrobras teve um papel desenvolvimentista, em grandes obras, mesmo que elas não fossem um bom negócio”, diz João Carlos Mello, presidente da consultoria Thymos Energia. “Isso foi importante no passado para o País, mas a Eletrobras sempre esteve na beira do precipício. Agora, a Eletrobras pode ficar mais robusta competindo de igual para igual.” Desde que assumiu a presidência da Eletrobras, Ferreira Jr. chacoalhou as estruturas de uma empresa que guarda muitos esqueletos nas gavetas.

Depois de quatro anos de sucessivos prejuízos, que somaram R$ 30,6 bilhões de 2012 a 2015, a Eletrobras conseguiu alcançar um lucro de R$ 3,4 bilhões no ano passado. O endividamento líquido da companhia continua alto (veja quadro acima), mas a relação com a geração de caixa, que se aproximou de nove vezes, caiu quase pela metade. “Apresentamos um plano de ação que vem sendo executado com grande êxito, para resgatar a Eletrobras, que estava numa situação muito difícil, econômica e financeiramente”, afirma Ferreira Jr., que comandou a passagem da empresa paulista CPFL de estatal para privada. “Independentemente da decisão de privatização, isso não muda. Até porque esse plano foi estabelecido exatamente para aumentar a eficiência, melhorar os resultados e as perspectivas da companhia.”

Vai dar água: a Usina Hidrelétrica de Itaipu, na fronteira do Paraguai, é uma ativo binacional que ficará de fora da privatização (Crédito:AP Photo/Jorge Saenz)

Nos próximos meses, a Eletrobras ganhará reforços em seu caixa. Em setembro, serão anunciadas as condições dos leilões de venda das seis distribuidoras que pertencem à estatal. A Celg, que foi a primeira a ser vendida, gerou R$ 1 bilhão para os cofres da empresa. A expectativa é que o processo seja concluído até o final deste ano, permitindo que a Eletrobras deixe definitivamente esse negócio. Há interessados nesses ativos e o mercado aposta em Energisa, Equatorial e Neoenergia. Além das distribuidoras, a Eletrobras começará a vender sua participação nas Sociedades de Propósito Específico (SPEs).

De um total de 178, a holding detém exclusivamente 74. “As distribuidoras estão fora das nossas prioridades, pois não há sinergia”, diz Miguel Setas, presidente da EDP no Brasil. “Mas, somos sócios da Eletrobras em três usinas, como a de São Manoel, em Mato Grosso, e temos interesse em ficar com a parcela minoritária.” A Eletrobras calcula a entrada de até R$ 6 bilhões com essas vendas. Além da negociação de ativos, pequenas ações já implementadas mostram a burocracia existente na companhia.

A primeira é a unificação do sistema de gestão. Ao todo, as empresas que formam a Eletrobras tinham 11 diferentes programas, o que provocava ineficiência e atrasos nas decisões. Para se ter uma ideia, a holding precisava de 28 dias para consolidar os resultados. Até o primeiro semestre do ano que vem, todas as empresas poderão “conversar” na mesma linguagem. Foram investidos R$ 140 milhões no programa, que vai gerar uma economia anual estimada de R$ 100 milhões. Essa integração permitiu criar um centro de serviços compartilhados, em que 164 processos, como contas a pagar e a receber, gestão de pessoas entre outros, ficarão concentrados num único lugar. Mais do que a economia financeira, a Eletrobras conseguirá dobrar sua produtividade nesse setor.

Quem indica?: a privatização vai evitar as indicações políticas, muito comuns na Eletrobras (Crédito:Pedro Teixeira/ O Globo)

Mas nem tudo são flores para Ferreira Jr. Seus esforços para sanear a companhia, às vezes, extrapolam. Numa conversa com sindicalistas, gravada sem o seu conhecimento, ele afirmou que há muitos inúteis, com salários de R$ 30 mil e R$ 40 mil. “A sociedade não pode pagar por vagabundo, em particular, no serviço público.” Ferreira Jr. teve de fazer um vídeo pedindo desculpas e reconhecendo o exagero nas suas palavras. O conflito aconteceu justamente pela reestruturação do quadro de funcionários, que visa diminuir de 17,2 mil pessoas para 12 mil pessoas, até a metade de 2018. A redução no número de assessores, da equipe administrativa e de gestores com polpudas gratificações permitirá uma economia anual de R$ 1,5 bilhão.

A atitude da equipe econômica e de planejamento de Michel Temer é uma das mais arriscadas politicamente. A empresa de energia não é uma simples estatal. É a companhia que mais interferência política sofreu em sua história, que teve início durante a ditadura militar. Ela sempre foi aparelhada e usada como cabide de emprego (chegou a ter mais de 23,5 mil empregados) ou para políticas públicas populistas e desastradas como a da ex-presidente Dilma Rousseff, que editou a Medida Provisória 579, em setembro de 2012, e numa canetada reduziu em média 16,2% a conta de luz para os consumidores residenciais e 28% para o setor produtivo.

A decisão da presidente dilapidou o caixa da Eletrobras para pagar esse subsídio. O Tribunal de Contas da União calcula que, para tirar R$ 16,8 bilhões por ano da tarifa, o contribuinte teve de pagar R$ 61 bilhões a mais. Dilma mantinha seu próprio operador na empresa, Valter Cardeal, que era o responsável por cobrar propina para o PT. A Eletrobras, já prejudicada por um sistema corrompido, entrou em situação pré-falimentar. “Uma empresa estratégica é aquela que dá resultado e não a que faz tarifa subsidiada. Empresa forte garante tarifa baixa”, diz Franceli Jodas, sócia da área de energia da KPMG. “Muitos competidores não entravam em leilões com a Eletrobras porque sabiam que a oferta seria incompatível com o equilíbrio financeiro da companhia.”

Ministro de Minas e Energia no governo Dilma, Edison Lobão (PMDB-MA) ignorou relatórios da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) que indicavam a necessidade de intervenção e privatização de distribuidoras estaduais, em razão da baixa qualidade do serviço prestado por elas. O compadrio político fez Lobão decidir por federalizar essas problemáticas companhias, que se tornaram um fardo nos negócios da Eletrobras. Entre 2005 e 2011, foram investidos R$ 5 bilhões em seis distribuidoras.

Agora, as últimas serão vendidas e o grupo deixará esse negócio. O atual senador peemdebista alegou ser contrário à medida, pois “a empresa é estratégica para o País e não deveria ser entregue à iniciativa privada”. Dilma parece ter esquecido dos estragos provocados por ela na Eletrobras. Pelo Twitter, ela disse que “a privatização acaba com a segurança energética do País”. Ninguém deu bola. O desempenho das ações no dia do anúncio da privatização é uma demonstração de como os investidores vêem com ressalvas o papel interventor do governo na companhia.


“Teremos uma Eletrobras mais eficiente e uma tarifa mais competitiva”

O presidente da Eletrobras, Wilson Ferreira Jr., conversou com a DINHEIRO de Brasília, onde passou a semana passada em constantes reuniões com o governo para dar início ao processo de privatização da empresa.

Por que privatizar a Eletrobras?
Como é possível ter uma empresa estatal, ainda mais hoje, com o governo com as limitações que tem? É preciso colocar capital na companhia e desviá-lo para funções públicas essenciais, com as quais o governo tem compromisso. A decisão, com os cuidados que estão sendo tomados, de privatizar via mercado de capitais, com os melhores padrões de governança corporativa e de estabelecer uma golden share para ter decisões estratégicas e de Estado, de fato, democratiza o capital, para ser uma corporation. Além de preservar o nome da Eletrobras.

Qual modelo que deve ser adotado nessa privatização?
Um parecido com o da Embraer, pois tem uma golden share. O governo garante uma corporação brasileira, eficiente e com potencial muito grande, que às vezes não é reconhecido pelo mercado e às vezes pode fazer mais do que faz. É um benefício para o cidadão, o contribuinte e o consumidor. É o que uma empresa mais eficiente como a Eletrobras vai garantir.

A União abrirá mão do controle?
O governo continuará com uma participação relevante. Hoje, tem 64% (soma de União, BNDES e fundos) e o compromisso é que tenha menos de 50%. Ele não anunciou o modelo, mas continuará sendo relevante por um bom tempo. Isso vai garantir para o Estado uma empresa que gera mais resultado, mais dividendos e mais pagamento de impostos pelos seus bons resultados. Essa perspectiva alivia o contribuinte e torna a empresa mais eficiente.

O contribuinte poderá ser penalizado com uma conta de luz mais cara?
O modelo brasileiro está muito focado em leilões públicos, em que vence aquela empresa que constrói um ativo com a menor tarifa. Então, certamente no médio e longo prazo, teremos um setor mais eficiente, uma Eletrobras mais eficiente e uma tarifa mais competitiva.

A empresa será melhor com a saída do governo do controle?
Sem dúvida, porque ainda somos uma empresa pública. Temos um conjunto de obrigações que uma empresa privada não tem. Não é incomum que você faça um leilão eletrônico e ele demorar até sete meses para ser concluído, por causa de contestações, por exemplo. Numa empresa privada levaria um ou dois meses. Você acaba tendo sim, por força da estrutura de capital público, de atender um conjunto de regulamentos que tira a agilidade da companhia.

Como será feita a redução do quadro de funcionários?
A empresa tem 55 anos e é natural que as pessoas tenham um receio, neste momento, de só ouvir a parte ruim da privatização que é a demissão. Mas estamos fazendo uma reestruturação enquanto estatal, com plano de demissão voluntária, oferecendo pacotes atrativos para as pessoas, com adesão voluntária. A privatização é um ambiente em que o empregado que estiver comprometido com o sucesso e a eficiência da empresa vai ser beneficiado porque o regime é totalmente meritocrático.

A Eletrobras está deixando o negócio de distribuição?
Com auxílio do BNDES, estamos conduzindo o processo de vender seis distribuidoras para sairmos em definitivo desse negócio, até o fim deste ano, quando as privatizações devem ocorrer. O trabalho está sendo concluído agora e imaginamos que já em setembro começamos a tomar as providências do leilão.

O sr. continuará na companhia?
Estou feliz aqui e honrado com o desafio que foi dado. E agora mais entusiasmado com esse momento histórico.

 

Colaborou: Cláudio Gradilone