Em pouco mais de três anos, a operação Lava Jato revelou uma intrincada rede de corrupção, formada por políticos de todos os escalões e diversas empresas. O escândalo mais recente envolve a JBS, que está buscando um acordo de leniência com o Ministério Público Federal (MPF). Estipulada inicialmente pelo órgão para chegar a um consenso com a J&F, controladora do grupo, a multa de R$ 11,1 bilhões coloca em risco o futuro de 230 mil funcionários da companhia que, à parte das práticas ilícitas, tornou-se conhecida por sua gestão competente, traduzida, por exemplo, na série de aquisições de frigoríficos em dificuldade no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa, na última década.

A estratégia ajudou a empresa a se tornar a maior processadora de carnes do mundo, com uma receita de R$ 170 bilhões. Com presença em 24 países e uma série de grandes obras no portfólio, a Odebrecht também se destacou fora do País. Uma das especialidades que a tornaram conhecida foi a construção de usinas hidrelétricas, com mais de 80 projetos, em países como Portugal, Peru, Angola, Chile e Argentina. Outros nomes investigados seguem o mesmo roteiro.

Gigantes como Andrade Gutierrez, Braskem e Camargo Corrêa acumularam capacidades técnicas reconhecidas internacionalmente. E, no balanço entre o seu peso substancial na economia brasileira e os rombos bilionários que trouxeram aos cofres públicos, uma questão se faz necessária: como assegurar que os responsáveis sejam devidamente penalizados sem comprometer a sobrevivência dessas companhias? “Você tem de punir, mas manter o corpo vivo, para ser útil para a sociedade”, afirmou Torquato Jardim, ministro da Transpa-rência, Fiscalização e Controladoria Geral (CGU), em entrevista concedida neste mês à DINHEIRO. “São 600 mil empregos diretos e indiretos em jogo.”

Torquato Jardim, ministro da transparência CGU: “Você tem de punir, mas manter o corpo vivo, para ser útil para a sociedade”
Torquato Jardim, ministro da transparência CGU: “Você tem de punir, mas manter o corpo vivo, para ser útil para a sociedade” (Crédito:Sérgio Lima / IstoÉ)

Os acordos de leniência figuram como a alternativa mais viável para alcançar esse equilíbrio. Sem eles, essas companhias não podem fechar contratos com empresas estatais e ter acesso a financiamento público. Regida, em boa parte, pela Lei Anticorrupção,de 2013, essa via, porém, vem se mostrando tortuosa, especialmente pela falta de um balcão único de negociação. A regulamentação abre espaço para que os acordos tenham que ser fechados com, pelo menos, quatro órgãos: o Transparência CGU, o Tribunal de Contas da União (TCU), a Advocacia Geral da União (AGU) e o Ministério Público Federal (MPF).

“Isso gera insegurança jurídica”, diz Paulo Furquim de Azevedo, coordenador do Centro de Estudos em Negócios do Insper. “Mesmo fechando um acordo, a empresa fica exposta a processos de outros órgãos.” Professora de Direito da FGV, Angela Donaggio destaca que a pluralidade nas investigações é essencial. “Mas o ideal é que apenas uma entidade responda pelo acordo em si.” A Odebrecht ilustra bem esse cenário. Assim como outras empresas no âmbito da Lava Jato (leia quadro ao fnal da reportagem), o grupo fechou um acordo de leniência com o MPF, de R$ 3,8 bilhões.

Dividida em 23 parcelas anuais, corrigidas pela taxa Selic, a multa pode chegar a R$ 8,5 bilhões e supera a maior quantia global já paga em processos desse porte. Mas o prejuízo do grupo brasileiro pode crescer. Um dos riscos é voltar a ser impedido de fechar negócios com o governo, em um caso nas mãos do TCU, que trata de supostas fraudes nas licitações da usina Angra 3 e que também envolve a Andrade Gutierrez e a Camargo Corrêa. Em comunicado, a Odebrecht ressaltou que seu acordo de leniência foi fechado com o MPF, um “órgão extremamente capacitado tecnicamente”. E acrescentou: “O que se espera em uma democracia constitucional é que o Estado atue como um corpo harmonioso, com todos os seus órgãos trabalhando em prol da segurança jurídica.”

A falta de critérios uniformes na definição das multas também é alvo de críticas. As sanções podem variar de 0,01% até 20% do faturamento das empresas. E passam por diversos parâmetros. A tolerância dos executivos em relação à corrupção pode representar uma fatia de 1% a 4% da pena. “Em alguns casos, as penas são muito mais pesadas para a empresa do que para os sócios”, diz Daniel Tonon, professor do MBA em governança corporativa da FGV. A negociação da JBS é emblemática.

Enquanto a empresa está sujeita a multa bilionária, os irmãos Batista, seus controladores, pagarão R$ 110 milhões cada um e terão benefícios como imunidade. “As decisões têm sido desiguais”, afirma uma fonte do mercado, que cita o exemplo de Marcelo Odebrecht, ex-CEO da Odebrecht, preso desde junho de 2015. A J&F observou, em comunicado, que está cooperando com as autoridades e espera encontrar um desfecho adequado em um prazo razoável. Os especialistas ressaltam, porém, que a lei ainda é muito recente no Brasil.

O afastamento de gestores corruptos, por exemplo, ainda não é previsto. “A lei americana é de 1977, mas só se consolidou, de fato, em 2007”, afirma Giovanni Falcetta, sócio do TozziniFreire Advogados. “Estamos sendo forçados a aprender no olho do furacão.” Entre possíveis ajustes, Alexandre Di Miceli, professor de governança corporativa da FECAP, observa que os acordos devem contemplar, necessariamente, uma mudança de postura. Ele cita a Siemens como exemplo.

“A empresa pagou pelos seus erros, contratou seu primeiro CEO no mercado depois de 160 anos de história, demitiu 80% da alta gestão e se tornou uma referência de boas práticas”, diz. Procurada, a Andrade Gutierrez ressaltou ações tomadas após o seu acordo, como a venda de ativos. A Braskem informou que tem aprimorado seu sistema de conformidade para que as práticas ilícitas não voltem a ocorrer. A Camargo Corrêa não concedeu entrevista.

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