O empresário americano Travis Kalanick já ganhou a alcunha de o “CEO mais odiado no mundo”. Fundador do aplicativo de transporte Uber, ele foi – e ainda é – persona non grata para a maioria dos taxistas do planeta, por conta da destruição que seu aplicativo de caronas provocou nesse mercado. Nas últimas semanas, no entanto, esse apelido nada agradável nunca lhe foi tão apropriado. A startup americana, que vale US$ 68 bilhões, esteve envolvida em uma série de derrapadas que colocaram em xeque a sua cultura de trabalho. No fim de fevereiro, a ex-funcionária Susan Fowler relatou em seu blog que sofreu assédio sexual e que, após informar o departamento de recursos humanos, a companhia nada fez. Logo depois, a Waymo, empresa de carros autônomos da Alphabet, holding que controla o Google, processou a Uber por supostamente roubar informações confidenciais de seu projeto de veículo sem motorista. Não bastasse isso, em 28 de fevereiro, um vídeo publicado pelo site de notícias econômicas Bloomberg mostrou Kalanick discutindo com Fawzi Kamel, um motorista do aplicativo, que reclamava dos preços baixos que espremem os ganhos dos condutores. “Algumas pessoas não se responsabilizam pelos próprios problemas”, disse o CEO da Uber, em fúria.

DIN1008-uber2Após esses três incidentes, a Uber ficou debaixo de forte escrutínio da mídia americana, que publicou diversas reportagens criticando sua cultura. Não faltaram exemplos de condutas consideradas impróprias, segundo relatos divulgados pelo jornal americano The New York Times. O quadro, com base em mais de 30 depoimentos, mostra uma empresa que coloca os funcionários uns contra os outros e faz vista grossa para as infrações cometidas por aqueles com melhor desempenho. Em nota, Kalanick disse que o que Susan Fowler “descreveu em seu blog é detestável e contrário a tudo que a Uber defende e acredita”. A companhia abriu uma investigação para apurar o caso. Sobre o processo da Alphabet, a startup diz que se trata de “uma tentativa sem fundamento de frear um concorrente e vamos nos defender na Justiça”. Kalanick também se desculpou com Kamel, o motorista com quem discutiu. “Devo mudar como líder e crescer”, afirmou. “Esta é a primeira vez que estou disposto a admitir que preciso de ajuda de liderança e pretendo obtê-la”.

Acusações de assédio sexual em empresas de tecnologia não são uma exclusividade da Uber. No ano passado, uma pesquisa realizada pelas executivas americanas Trae Vassallo e Michele Madansky, chamada de The Elephant in the Valley, com mais de duas centenas de mulheres que trabalharam por mais de uma década em empresas de tecnologia, apontou que 60% delas tiveram problemas relacionados à conduta sexual em seus ambientes de trabalho. A maioria, no entanto, não fez nada, pois acreditava que relatar os fatos poderia prejudicar sua carreira.

Ambientes de trabalho agressivos são também parte da cultura corporativa de grande parte das empresas de ponta. A Amazon, considerada a companhia mais inovadora do mundo pela revista americana Fast Company, também sofreu acusações de incentivar um clima interno de muita pressão, de pouca camaradagem e de estímulo para que os seus empregados passassem a perna uns nos outros. O livro “A Loja de Tudo”, do jornalista Brad Stone, conta a história da varejista online e faz um relato de seu fundador, o empreendedor Jeff Bezos, nada dignificante. Ele é, ao mesmo tempo, considerado brilhante e sanguinário. O fundador da Apple, Steve Jobs, morto em 2011, também era conhecido pelas suas atitudes pouco polidas no trato com seus subordinados.

A Uber, no entanto, está conseguindo um feito raro. Além de ter um ambiente de forte pressão por resultados, a exemplo de muitas outras empresas, a companhia está se indispondo com seus motoristas, que reclamaram da redução do preço das tarifas, e também com seus consumidores, que têm apontado uma queda na qualidade do serviço. “O que acontece com a Uber é um reflexo, de forma mais aguda, do que já vimos na Amazon: a busca por resultado a qualquer custo”, afirma Marcelo Coutinho, coordenador do mestrado profissional da FGV.

DIN1008-uber3Mercados altamente tecnológicos, como o que a Uber está, são também marcados pela regra de que o “vencedor fica com tudo”. Por esse motivo, destruir o rival passa a ser vital para o resultado da companhia, o que pode explicar a agressividade da startup. “O modelo de negócio da Uber só funciona se ela levar a falência seus competidores e construir um monopólio”, diz Vivek Wadhwa, membro eminente da Singularity University e da Stanford University. “Só assim, ele pode subir preços e se tornar lucrativo.” Em 2016, a receita da startup foi estimada em US$ 5,5 bilhões e o prejuízo, em US$ 3 bilhões.

As perdas, no entanto, não podem ser consideradas ainda um problema. A Uber está altamente capitalizada. Desde sua fundação, em 2009, já recebeu US$ 12,9 bilhões em recursos dos principais fundos de venture capital do Vale do Silício. Com tanto dinheiro, ela avançou mundo afora e já está presente em mais de 500 cidades ao redor do globo. No Brasil, estima-se que esteja em mais de 40 municípios. Mas a concorrência está aumentando e ganhando cada vez mais espaço. Na China, a empresa de Kalanick sucumbiu ao Didi Chuxing, que comprou sua operação. No Brasil, o aplicativo rival 99 recebeu aporte de US$ 100 milhões da Didi e usará toda essa dinheirama para investir no serviço Top, uma espécie de Uber da startup brasileira. No começo do ano, o Top contava com cinco mil motoristas em São Paulo. Até o fim de março, a meta é chegar a 20 mil em até três cidades. Em 2017, o plano é estar em até 10 localidades.

O aumento da concorrência no Brasil vem acompanhado da queda da qualidade do serviço. Um levantamento do site ReclameAqui, uma espécie de Procon online, mostra que a Uber teve 1.357 reclamações em 2015. Esse número foi multiplicado por 22, chegando a 30.144 em 2016. “Eles subestimaram o consumidor brasileiro”, afirma Maurício Vargas, presidente do ReclameAqui. “Acharam que são uma empresa de tecnologia, mas são de serviço. É um erro estratégico.” A Uber alega que tinha 1 milhão de clientes em 2015. Hoje, são quase 9 milhões. A empresa também inaugurou uma nova central de atendimento em São Paulo, espaço que vai receber R$ 200 milhões em investimento. Segundo o ReclameAqui, 64% do volume total das queixas estão concentradas em São Paulo e Rio de Janeiro, cidades onde o aplicativo de transporte está atuando desde 2015. A startup fundada por Kalanick tem menos de uma década de vida. Mas precisará acelerar para mudar seus processos e para melhorar seus controles, caso não queira que essas derrapadas se transformem em uma acidente mais sério no futuro.