05/06/2020 - 10:00
Na home page do Instituto Locomotiva, do qual Renato Meirelles é sócio-fundador e presidente, uma frase em destaque serve de motto – “Mais do que entender de números, somos especialistas em entender de gente”. Um carimbo que inicialmente o transformou em autoridade no conhecimento do brasileiro da classe C, do pobre e do favelado e hoje num dos maiores especialistas em varejo e hábitos do consumidor no País. Em meio a levantamentos, dados e muita sensibilidade analítica, ele consegue tirar recortes otimistas da pandemia. “Há uma aceleração digital. Viveremos em cinco meses o que levaríamos cinco anos”, afirma.
DINHEIRO – Vamos começar pelo mais deprimente: houve uma massa das classes AB que pediu o auxílio emergencial pelo coronavírus, sendo que o primeiro corte, a renda, os excluía. Perdemos a noção de moral?
RENATO MEIRELLES — Nas pesquisas qualitativas essas pessoas dizem que são PJ e haviam perdido renda, ou a esposa trabalha e o cara não e um pede, ou ‘o govenro nunca deu nada e tenho direito’… Não havia percepção deliberada de fraude.
Pior. De cada 100 pessoas de classes AB que pediram, 69% conseguiram o benefício. Entre os moradores de favela, de cada 100 que pediram, 61% obtiveram o benefício.
Mostra muito que os sistemas de controle do governo são frágeis.
A Covid-19 deixou os brasileiros, já desiguais, ainda mais desiguais?
A primeira grande fake news do coronavírus foi dizer que o vírus é democrático. Ele pode até atingir ricos e pobres da mesma maneira, mas os anticorpos da sociedade brasileira são muito diferentes entre os mais ricos e os mais pobres.
De que maneira?
Se a gente for ver pela lógica do acesso à internet, isso fica muito óbvio. Imagine que entre as pessoas que são elegíveis para conseguir o auxílio emergencial, ou seja, pertencem a uma família com renda per capita de até meio salário mínimo, destas 5,4 milhões não têm acesso à internet nem têm conta em banco [segundo o Ministério da Cidadania 50 milhões receberam a primeira parcela do benefício]. Simples assim.
Criamos na esfera digital mais um gap social e econômico?
A pandemia deixou claro que é preciso fazer com que o acesso à internet de qualidade seja considerado um direito fundamental. Existe até uma PEC sobre isso [8-2020], do senador Luiz Pastore [MDB-ES]. Um direito como é o acesso à educação, o acesso à saúde e o acesso à moradia. Porque pessoas que não têm acesso à internet de qualidade não conseguem ter acesso a serviços públicos.
Sem isso a competição fica desigual.
Um valor muito grande que aprendi de meus pais é que ninguém é melhor que ninguém. Meu posicionamento de vida é o de igualdade de oportunidades. Quando me perguntam se sou de esquerda ou de direita, eu digo ‘eu defendo a igualdade de oportunidades, dê o nome que você quiser.’ Se perguntam ‘você é contra a meritocracia?’, respondo: ‘Pelo contrário, sou um radical da meritocracia’. Mas só existe meritocracia se todos largam juntos.
O que não ocorre…
Por exemplo. Sou homem, branco, de 42 anos, com curso superior, morador de São Paulo. Pelo simples fato de eu ser branco eu ganho um terço a mais que um homem de 42 anos com ensino superior, de São Paulo, que seja negro. É dever moral dos que defendem a meritocracia que todos partam do mesmo lugar.
Nosso abismo se amplifica.
Não tenho dúvida nenhuma. Mas isso era o Brasil até a Covid-19. Existe algo que faz a sociedade se movimentar. Se chama necessidade. Isso mudou.
De que maneira?
O fato de parte do auxílio emergencial só se dar por cadastramento on-line, ações como da Central Única das Favelas ou do Gerando Falcões só se darem por meio de parcerias com bancos digitais, o aumento da necessidade do consumo on-line graças à quarentena, tudo levou a gente a ter um processo de aceleração muito grande.
Uma revolução nos hábitos de consumo.
Nossas pesquisas têm mostrado que vamos acabar o quinto mês do início da pandemia com uma aceleração digital que levaria cinco anos para acontecer.
Em todos os recortes de perfil?
Sim. Claro que a aceleração será proporcionalmente maior na baixa renda porque havia menos consumo digital ali. Mas em todas as classes e faixas etárias.
Vivemos, então, não o aprofundamento da desigualdade, mas o oposto?
É uma alfabetização digital à fórceps, que reduz o gap [digital].
Em que medida essa aceleração digital mexerá nos hábitos de consumo?
Vamos pegar uma pesquisa sobre brasileiros de todas as classes com mais de 16 anos, feita agora. Perguntados sobre o aprendizado com a quarentena, 92% dizem que vão comparar mais os preços e 82%, experimentar novos marcas.
Marcas terão de reaprender na marra?
Olhe o sistema financeiro como exemplo. O varejo bancário tradicional é o único varejo que tem detector de pobre na porta. Todo o movimento para atender bem o consumidor era para classes A e B e reduzir custo de agência. O cliente potencial médio, bancarizado ou desbancarizado, tendia a achar que o banco era aquele sujeito que te emprestava um guarda-chuva num dia de sol e tirava de você ao começar a chover.
Mas as fintechs mudaram isso, não?
A primeira leva de crescimento de fintechs era formada pela segunda conta do rico ou para substituir a conta universitária. Fintechs que cresceram através da insatisfação do consumidor médio com o sistema bancário. Não tem taxas, não tem burocracia, não precisa ficar provando que é honesto… O foco não estava nos sem banco. Fizemos uma pesquisa antes da Covid-19, no início do ano, em que 95% das pessoas com contas em fintechs também tinham conta num banco tradicional. Não era algo pensado nos consumidores de menor renda, por exemplo.
A pandemia alterou o cenário?
Com a Covid também esse universo de fintechs começa a mudar. Por duas razões. A primeira é que você tem fintechs, como PicPay, que fazem acordos com governos estaduais, por exemplo, os de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, que passaram a substituir a merenda escolar por um vale. A segunda razão: temos hoje 18 milhões de pessoas que recebem a renda ou parte dela por aplicativos. O cash in, a entrada do dinheiro, mudou. A Covid-19 acelera a mudança do dinheiro vivo pro dinheiro digital.
Onde mais a pandemia mostra mudanças?
Outra transformação é a do ponto de vista da oferta. Pegue o exemplo de qualquer grande companhia do País. Você precisa aumentar a venda on-line. A segurança da informação iria exigir que o consumidor assinasse não sei quantos termos, o cara de TI iria falar que demoraria xis tempo, o de legal colocaria 50 problemas na mesa… Hoje, o CEO fala: ‘Dane-se, põe no ar que precisamos vender.’ Todos tiveram de se reinventar. Ou era isso ou quebrar.
Isso partiu mais da oferta ou da demanda?
Consumidor e marcas aceleraram juntos. Como numa dança.
Em que outro setor, além do financeiro, a transformação se perceberá rapidamente?
Shopping é historicamente reativo a mudanças do consumidor. Tinha dificuldade de entender o entretenimento, a ascensão da classe C, entender o shopping como um centro democrático… Pensar o shopping só como um centro de compras é algo que vai fazer menos sentido. A experiência vai ganhar importância. E talvez o tamanho das lojas se reduza.
Qual o maior erro de uma marca hoje?
Não dá é para ser mentiroso. Se é verdade que marcas mornas não convencem mais o consumidor, também é verdade que marcas que não têm empatia – e aí na Covid-19 entram todas as que falaram ‘tanto faz morrer 5 mil, 10 mil’ – ou preguem algo que não praticam são marcas que vão entrar em descrédito.
A opção entre economia e saúde?
Criou-se uma falsa polêmica entre economia e saúde. Só pessoas vivas produzem, só pessoas vivas consomem. Mortos não reconstroem a economia. As pessoas esquecem disso. Assim como esquecem que somente os brasileiros com mais de 50 anos movimentam R$ 2,1 trilhões. E os que têm mais de 60 anos somados aos de grupos de risco com menos de 60 anos consomem R$ 2,6 trilhões, isso é mais que a classe C, mais que a classe B e mais que a classe A. Eles são o maior mercado consumidor do País. Há mais de 25 milhões de lares sustentados por pessoas do grupo de risco. O maior mercado consumidor do Brasil é formado pelo grupo de risco.
Sem essas pessoas não há retomada?
Exatamente. Se não for por uma questão de princípio, que seja por inteligência.
E existe um tipo de posicionamento que atraia mais a classe C ou D ou a A e B?
Há temas mais caros às classes A e B, como sustentabilidade, e outros mais relevantes para Ce D, como igualdade de oportunidades e preconceitos. Mas algo é transversal: os haters [risos]. Aí entra um problema grande nas empresas que é achar que as métricas nos meios digitais são as métricas totais. Não são. Ficam apavoradas se um grupo de consumidores se organiza para entupir o Facebook.
Como enfrentar isso?
Eles formam um perfil muito específico, e não estão querendo ser convencidos. Não serão convencidos. Assim como ninguém convence ninguém sobre política numa rede social. Optar significa excluir, e você vai tomar porrada de hater mesmo estando muito certo. O hater só é nocivo quando a marca não é coerente. Porque se a marca defende algo coerente e o hater vem para cima a marca tem de responder, ‘não, eu defendo isso mesmo’.
Há remédio, então?
A vacina contra os haters é a coerência.
E o consumidor percebe isso?
Sim.
Há alguma pesquisa sua em que na análise dos dados você preferia estar errado?
Gostaria de acreditar que mais de 70% dos brasileiros defendem a vida, defendem a solidariedade, defendem os direitos iguais entre homens e mulheres, o direito a cada um ter a identidade sexual que quiser… mas não são mais de 70%.
Quantos são?
Dois terços defendem o campo civilizatório. Eu gostaria muito que o campo não civilizatório não chegasse a um terço, que fosse bem menor. Eu gostaria muito de estar errado quanto a esse número.
Talvez as fake news tenham dado certo?
O fake não tem vida longa.
Essa disputa entre campo civilizatório e não civilizatório vai impactar eleitoralmente?
Nenhuma dúvida de que vai impactar as próximas eleições. A pandemia se tornou um grande freio de arrumação. Como uma linha: olha, tem um campo aqui que acredita na ciência, defende a vida e não duvida que a Terra é redonda. Esse campo consegue conversar, tem diálogo, nele a política acontece. Você tem marcos regulatórios da civilização. Compromisso com essa agenda mínima civilizatória e isso não pode ser colocado em xeque. A Covid-19 tem sido o grande freio de arrumação desse marco civilizatório.